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Mônica Ribeiro Chaves1
Luciana Cruz de Freitas 2
ENTRE O CÓDIGO E O SENTIDO: A ALFABETIZAÇÃO FUNCIONAL COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO DE PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo analisar a alfabetização funcional no contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA), compreendendo suas especificidades, potencialidades e desafios enquanto prática pedagógica inclusiva e instrumento de emancipação social. A partir de uma revisão da literatura recente, publicada entre 2018 e 2025, buscou-se discutir como o ensino da leitura e da escrita pode ser ressignificado quando associado à funcionalidade e ao uso social da linguagem. Os estudos analisados indicam que pessoas com TEA apresentam grande heterogeneidade nos domínios cognitivo, linguístico e sensorial, o que requer metodologias flexíveis, personalizadas e contextualizadas. Pesquisas recentes destacam a eficácia de abordagens baseadas em atividades reais e significativas, como o programa Functional Reading Activities to Motivate and Empower (FRAME) e o Currículo Funcional Natural (CFN), que promovem engajamento, autonomia e generalização das aprendizagens. Além disso, as tecnologias assistivas e a instrução mediada por computador têm se mostrado aliadas promissoras na personalização do ensino e na redução de barreiras sensoriais. Entretanto, persistem desafios estruturais e formativos, como a falta de formação docente especializada, a escassez de materiais adaptados e a lacuna entre as políticas públicas e a prática escolar. Conclui-se que a alfabetização funcional deve ser compreendida como uma prática social, ética e humanizadora, capaz de garantir à pessoa com TEA o direito à comunicação, à autonomia e à participação plena na sociedade.
Palavras-chave: Inclusão escolar. Metodologias ativas. Educação especial.
ABSTRACT
This study aims to analyze functional literacy in the context of Autism Spectrum Disorder (ASD), seeking to understand its specificities, potentialities, and challenges as an inclusive pedagogical practice and an instrument of social emancipation. Based on a review of recent literature published between 2018 and 2025, the research discusses how teaching reading and writing can be redefined when associated with the functionality and social use of language. The findings indicate that individuals with ASD present great heterogeneity in cognitive, linguistic, and sensory domains, requiring flexible, personalized, and contextualized methodologies. Recent studies highlight the effectiveness of approaches based on real and meaningful activities, such as the Functional Reading Activities to Motivate and Empower (FRAME) program and the Natural Functional Curriculum (NFC), which foster engagement, autonomy, and the generalization of learning. Additionally, assistive technologies and computer-assisted instruction have proven to be promising tools for personalizing education and reducing sensory barriers. However, significant structural and pedagogical challenges remain, such as the lack of teacher training, insufficient adapted materials, and the gap between public policies and school practices. It is concluded that functional literacy should be understood as a social, ethical, and humanizing practice, capable of ensuring that individuals with ASD achieve communication, autonomy, and full participation in society.
Keywords: Inclusive education. Active methodologies. Special education.
1 Aluna de mestrado pela EBWU.
2 Orientadora, professora, doutora.
INTRODUÇÃO
No caso de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o desenvolvimento da alfabetização funcional apresenta especificidades que exigem uma compreensão ampla das dimensões cognitivas, linguísticas, sociais e comportamentais envolvidas no processo de aprendizagem. Trata-se de um grupo caracterizado por ampla heterogeneidade, tanto em termos de funcionamento intelectual quanto de habilidades comunicativas e adaptativas, o que torna o ensino da leitura e da escrita um desafio que vai além da simples aplicação de métodos tradicionais (BECKERSON et al., 2024; PERISTERI et al., 2024).
Pesquisas recentes apontam que muitos indivíduos com TEA desenvolvem, em algum grau, habilidades de decodificação — isto é, a capacidade de reconhecer e pronunciar palavras escritas de forma igual ou até superior à de seus pares com desenvolvimento típico. Entretanto, essa competência nem sempre se traduz em compreensão leitora efetiva, uma vez que dificuldades em aspectos semânticos, inferenciais e pragmáticos interferem na interpretação global do texto (PERISTERI et al., 2024). Assim, a leitura tende a ocorrer de maneira literal e fragmentada, sem a integração necessária entre o conteúdo lido e o contexto comunicativo.
Beckerson et al. (2024) destacam que essa dissociação entre precisão de leitura e compreensão textual está relacionada, em grande parte, às diferenças no processamento cognitivo e linguístico observadas no espectro autista. Indivíduos com TEA, por exemplo, podem apresentar déficits em funções executivas, na capacidade de abstração e na teoria da mente componentes essenciais para compreender intenções, inferir significados implícitos e construir representações mentais coerentes do texto. Como resultado, a leitura, ainda que tecnicamente bem executada, pode não gerar compreensão funcional, limitando a capacidade do sujeito de aplicar o conhecimento adquirido em situações reais do cotidiano.
Diante disso, torna-se evidente que estratégias pedagógicas baseadas apenas em métodos fonéticos e de decodificação não são suficientes para garantir a autonomia leitora e comunicativa desses estudantes. É necessário que a alfabetização esteja articulada a contextos de uso real da linguagem, promovendo situações em que o aluno com TEA possa empregar a leitura e a escrita em tarefas que façam sentido para sua rotina — como interpretar mensagens, compreender instruções, ler sinais, bilhetes e textos digitais. Essa perspectiva funcional, conforme reforça Prahl (2024), amplia o sentido do aprendizado ao associar o ato de ler com finalidades práticas e socialmente significativas, o que favorece o engajamento, a motivação e a generalização das habilidades adquiridas para além do ambiente escolar.
A alfabetização funcional, portanto, deve ser entendida como um processo formativo complexo, que ultrapassa a mera aquisição de códigos linguísticos e se consolida como ferramenta de desenvolvimento cognitivo, comunicativo e social da pessoa com autismo.
Mais do que aprender a ler e a escrever, trata-se de compreender o uso da linguagem escrita como um instrumento de mediação da realidade, de construção de significados e de participação ativa no meio social (KURZEJA et al., 2024). Assim, a alfabetização funcional se insere em uma perspectiva de educação emancipatória, na qual o conhecimento é orientado pela autonomia e pela possibilidade de agir com independência diante das demandas da vida cotidiana.
Tal abordagem coaduna-se com os princípios da educação inclusiva, fundamentada em valores éticos e políticos de equidade, respeito às diferenças e garantia de oportunidades educacionais para todos. Conforme a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2020), o processo de ensino-aprendizagem deve ser pautado pela valorização das singularidades cognitivas e emocionais de cada estudante, assegurando condições de aprendizagem que respeitem o ritmo, os estilos e as potencialidades individuais. No caso do TEA, isso implica desenvolver estratégias pedagógicas que contemplem tanto a dimensão técnica da alfabetização quanto sua aplicação prática e significativa, ampliando o potencial de autonomia e de comunicação dos alunos.
A literatura contemporânea tem apontado evidências consistentes sobre a relevância de práticas pedagógicas contextualizadas e funcionais no processo de alfabetização de pessoas com TEA. Prahl (2024) observa que o uso de atividades de leitura funcional como a interpretação de bilhetes, mensagens, e-mails e outros textos presentes na vida diária contribui para elevar o engajamento e a motivação dos aprendizes, uma vez que estabelece relação direta entre o conteúdo ensinado e a experiência concreta do estudante. Esse vínculo entre o texto e a funcionalidade cotidiana desperta interesse genuíno pela leitura e favorece a transferência do aprendizado para contextos reais, fortalecendo a autonomia comunicativa e social.
De modo complementar, Beckerson et al. (2024) demonstram que intervenções pedagógicas baseadas na construção de imagens mentais e verbalização de conteúdos — como na metodologia Visualizing and Verbalizing estimulam processos cognitivos superiores relacionados à compreensão e à memória semântica. Essa estratégia permite que o aluno com TEA desenvolva não apenas a capacidade de decodificar palavras, mas também de atribuir sentido ao texto, conectando ideias e inferindo informações implícitas, o que resulta em avanços significativos na compreensão leitora.
Por sua vez, Kurzeja et al. (2024) ressaltam o potencial das tecnologias educacionais assistivas e dos programas de Computer-Assisted Instruction (CAI) no ensino da leitura para indivíduos com autismo e/ou deficiência intelectual. Essas ferramentas oferecem possibilidades de personalização das atividades, adaptação sensorial, apresentação multimodal de conteúdos e feedback imediato, elementos que se mostram especialmente eficazes diante das necessidades cognitivas e atencionais características do TEA.
Além disso, o ambiente digital possibilita a simulação de situações funcionais, como o preenchimento de formulários ou a leitura de instruções, aproximando o ensino da realidade vivida pelo aluno e ampliando sua capacidade de generalização.
Nesse sentido, a integração entre abordagens cognitivas, funcionais e tecnológicas representa uma tendência atual e necessária no campo da alfabetização inclusiva. A articulação entre diferentes metodologias leitura funcional, estratégias de compreensão e tecnologias assistivas oferece uma base sólida para a construção de práticas pedagógicas individualizadas, significativas e socialmente relevantes, que favorecem não apenas o aprendizado acadêmico, mas o exercício pleno da cidadania e o fortalecimento da dignidade das pessoas com TEA (PRAHL, 2024; BECKERSON et al., 2024; KURZEJA et al., 2024).
No contexto brasileiro, entretanto, ainda são escassos os estudos que investigam práticas de alfabetização funcional voltadas a estudantes com TEA nos anos iniciais de escolarização (ROSA; CANTERO, 2024). Muitos professores relatam carência de formação específica e dificuldade para adaptar metodologias de ensino às necessidades individuais desses alunos, o que reforça a importância de pesquisas que articulem teoria e prática no campo da educação inclusiva (MELO, 2024; KONKEL, 2024). A lacuna entre o conhecimento teórico e as práticas efetivas de sala de aula evidencia a urgência de propostas pedagógicas que integrem recursos tecnológicos, estratégias cognitivas e materiais funcionais, de modo a favorecer a autonomia leitora e a inclusão social das pessoas com TEA (BOSA, 2024).
Sob essa perspectiva, compreender a alfabetização funcional no contexto do autismo implica reconhecer que a leitura e a escrita são instrumentos de participação social, de acesso à informação e de construção da cidadania. A abordagem funcional amplia as possibilidades de aprendizagem, promovendo não apenas o desenvolvimento acadêmico, mas também habilidades práticas relacionadas à vida diária, como interpretar instruções, compreender avisos, preencher formulários e utilizar tecnologias digitais (COSTA et al., 2025). Assim, alfabetizar funcionalmente é também incluir, garantindo que o indivíduo com TEA possa exercer seus direitos de forma autônoma e plena.
Dessa forma, esta pesquisa propõe-se a analisar e discutir as contribuições teóricas e práticas da alfabetização funcional para o desenvolvimento da autonomia e da inclusão de pessoas com TEA, a partir de uma revisão bibliográfica de estudos recentes. O estudo pretende, ainda, subsidiar educadores e profissionais da área com reflexões e estratégias que favoreçam a consolidação de práticas pedagógicas mais equitativas, humanas e efetivas no processo de ensino-aprendizagem de alunos com autismo. Em síntese, a alfabetização funcional, ao ser incorporada à prática educativa inclusiva, torna-se ferramenta essencial para a construção de uma sociedade mais justa, participativa e acessível a todos.
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REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
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Alfabetização funcional: conceito, fundamentos e relevância social
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A alfabetização, tradicionalmente associada ao domínio da leitura e da escrita, deve ser compreendida, no contexto contemporâneo, como uma prática social complexa, que ultrapassa o simples aprendizado técnico dos códigos linguísticos. A concepção de alfabetização como um fenômeno puramente cognitivo ou mecânico, centrado na decodificação de letras e palavras, é considerada limitada diante das demandas de uma sociedade cada vez mais letrada e mediada por múltiplas linguagens. Nesse sentido, o processo de alfabetização deve ser entendido como uma prática que envolve dimensões culturais, comunicativas, cognitivas e sociais, articuladas à construção de sentido e à participação ativa na vida coletiva (SOARES, 2018).
De acordo com Soares (2018), alfabetizar é mais do que ensinar a ler e a escrever; é permitir que o sujeito compreenda a função social da linguagem e seja capaz de utilizá-la como instrumento de inserção e transformação social. A alfabetização, portanto, deixa de ser vista apenas como uma etapa inicial da escolarização e passa a ser concebida como processo contínuo de apropriação da linguagem escrita em diferentes contextos de uso, nos quais o indivíduo constrói conhecimento e significado. Assim, o conceito de alfabetização funcional surge como desdobramento natural dessa visão, enfatizando a necessidade de formar leitores e escritores capazes de empregar a linguagem de modo prático, reflexivo e contextualizado (KONKEL, 2024; MELO, 2024).
Street (2020), ao discutir o modelo ideológico da alfabetização, propõe que o letramento deve ser compreendido como uma prática situada social e culturalmente, e não como um conjunto neutro de habilidades técnicas. Para o autor, as práticas de leitura e escrita sempre se realizam em contextos históricos específicos, permeados por valores, propósitos e relações de poder. Essa compreensão é essencial para pensar a alfabetização funcional, pois implica reconhecer que o ato de ler e escrever está vinculado a finalidades concretas e a papéis sociais que o sujeito desempenha em seu cotidiano. Assim, o letramento funcional pressupõe que o indivíduo utilize a leitura e a escrita para participar das práticas sociais, compreender o mundo e exercer plenamente sua cidadania (BRASIL, 2020).
No âmbito escolar, essa perspectiva redefine o papel da instituição de ensino, que deixa de ser um espaço voltado unicamente à transmissão de códigos linguísticos e passa a assumir a função de formadora de sujeitos críticos, autônomos e socialmente participativos. A alfabetização funcional, portanto, implica repensar metodologias, currículos e práticas pedagógicas, de modo que o processo de ensino-aprendizagem esteja orientado não apenas para a aquisição de competências linguísticas, mas também para o desenvolvimento de capacidades de análise, interpretação e aplicação da leitura e da escrita em situações reais (KONKEL, 2024; MELO, 2024).
Melo (2024) enfatiza que alfabetizar funcionalmente é proporcionar ao sujeito oportunidades concretas de usar a leitura e a escrita como ferramentas de interação com o mundo, o que envolve desde compreender bilhetes, mensagens digitais e formulários até interpretar textos instrucionais e informativos. Essa abordagem torna o aprendizado mais significativo, pois conecta o conteúdo escolar à experiência de vida do aluno, promovendo o engajamento e a motivação. Além disso, a alfabetização funcional contribui para o desenvolvimento da autonomia e da dignidade humana, aspectos fundamentais em um projeto educacional que se pretende inclusivo e emancipador.
De modo convergente, Konkel (2024) argumenta que a alfabetização funcional está intrinsecamente relacionada ao ideal de educação inclusiva, uma vez que possibilita a participação ativa de pessoas com diferentes condições cognitivas, linguísticas e sociais nos espaços educativos e comunitários. A autora ressalta que ensinar a ler e escrever de forma funcional significa romper com modelos pedagógicos rígidos e homogêneos, substituindo-os por práticas que valorizem a singularidade de cada aprendiz e reconheçam a diversidade como princípio educativo.
Nesse contexto, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2020) consolida as bases legais e éticas dessa concepção ao afirmar o direito de todos os estudantes à aprendizagem significativa, garantindo-lhes acesso, permanência e sucesso escolar. Essa política reconhece que a educação deve ser orientada por práticas pedagógicas que respeitem o ritmo, o estilo cognitivo e as particularidades emocionais dos aprendizes, promovendo condições reais de aprendizagem e participação. Assim, a alfabetização funcional, quando aplicada a sujeitos com necessidades específicas — como aqueles com Transtorno do Espectro Autista (TEA) —, deve considerar as múltiplas dimensões que compõem o desenvolvimento humano: a cognitiva, a afetiva, a social e a comunicativa.
No caso das pessoas com TEA, essa abordagem ganha ainda mais relevância. A alfabetização funcional torna-se um instrumento de mediação e inclusão, pois possibilita que o indivíduo desenvolva habilidades linguísticas adaptadas às suas formas particulares de compreender o mundo e de se comunicar. O contexto e a mediação pedagógica assumem papel central nesse processo, uma vez que a aprendizagem significativa depende da criação de ambientes estruturados, previsíveis e motivadores, nos quais o aluno possa construir sentido para o uso da linguagem escrita (BECKERSON et al., 2024; PRAHL, 2024).
Portanto, compreender a alfabetização funcional a partir da perspectiva da educação inclusiva é reconhecer que o ensino da leitura e da escrita não pode se restringir à aprendizagem de símbolos, mas deve ser orientado pela construção de competências que favoreçam a autonomia, a comunicação e a participação social.
Essa visão humanizadora da alfabetização insere-se em um paradigma educacional que entende o conhecimento como prática social e a escola como espaço de transformação e de garantia de direitos, reafirmando a alfabetização como um ato político e emancipador (SOARES, 2018; STREET, 2020; BRASIL, 2020; MELO, 2024; KONKEL, 2024).
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Especificidades da alfabetização no Transtorno do Espectro Autista (TEA)
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O Transtorno do Espectro Autista (TEA) caracteriza-se por uma ampla heterogeneidade nos domínios cognitivo, linguístico, sensorial, social e comportamental, o que implica padrões de aprendizagem bastante diversos entre os indivíduos que compõem o espectro. Essa pluralidade faz com que os processos de leitura e escrita se manifestem de maneiras singulares, exigindo abordagens pedagógicas diferenciadas, flexíveis e individualizadas no processo de ensino-aprendizagem (BECKERSON et al., 2024; PERISTERI et al., 2024).
Enquanto alguns sujeitos com TEA demonstram desempenho elevado nas habilidades de decodificação ou seja, no reconhecimento e pronúncia de palavras, outros apresentam dificuldades significativas na compreensão semântica e na utilização funcional da leitura, especialmente quando o texto exige inferências, abstração ou contextualização. Essa discrepância entre a capacidade técnica de leitura e a habilidade de compreender e aplicar o que foi lido revela uma característica cognitiva central do autismo: a dissociação entre o processamento literal e o interpretativo da linguagem (PERISTERI; FRANTZIDIS; ANDREOU, 2024).
Peristeri, Frantzidis e Andreou (2024) apontam que as dificuldades de compreensão leitora em pessoas com TEA decorrem de limitações em áreas cognitivas superiores, como a teoria da mente, as funções executivas e a coesão discursiva. A teoria da mente refere-se à capacidade de compreender que outras pessoas possuem pensamentos, crenças e intenções diferentes das próprias competência essencial para interpretar as intenções do autor de um texto. Já as funções executivas, responsáveis pelo planejamento, controle inibitório e flexibilidade cognitiva, influenciam a capacidade de o leitor organizar informações, relacionar ideias e construir inferências. Por fim, a coesão discursiva diz respeito à habilidade de estabelecer conexões lógicas entre sentenças e parágrafos, articulando significados para formar uma compreensão global.A ausência ou fragilidade nesses processos cognitivos impacta diretamente o entendimento textual, mesmo quando a leitura é fluente do ponto de vista técnico.
Nesse cenário, Beckerson et al. (2024) identificaram resultados promissores com a aplicação da intervenção Visualizing and Verbalizing (V/V) em crianças com TEA, demonstrando que o treino da formação de imagens mentais e da verbalização do conteúdo lido contribui significativamente para o desenvolvimento da compreensão leitora.
Essa abordagem fundamenta-se na hipótese de que a visualização semântica ou seja, a criação de representações mentais concretas a partir do texto auxilia o leitor a conectar palavras, frases e conceitos de forma coerente, promovendo uma integração entre a linguagem verbal e o pensamento imagético. A estratégia permite que o aluno com TEA vá além da decodificação mecânica e desenvolva habilidades interpretativas e inferenciais, favorecendo uma leitura ativa e significativa.
Além disso, Beckerson et al. (2024) sugerem que o ensino de estratégias cognitivas explícitas, como a verbalização e o uso de perguntas mediadoras durante a leitura, contribui para a autonomia cognitiva do estudante, estimulando-o a monitorar a própria compreensão. Essa prática também estimula a flexibilidade mental e a capacidade de generalização, aspectos que frequentemente se mostram desafiadores para pessoas com TEA.
Entretanto, o processo de alfabetização não se limita aos aspectos cognitivos. As dimensões sensorial e comportamental desempenham papel igualmente relevante no desempenho acadêmico e devem ser cuidadosamente consideradas pelo educador. Conforme Bosa (2024), as dificuldades em atenção compartilhada, autorregulação emocional e flexibilidade cognitiva traços comuns no espectro autista podem comprometer a concentração, a permanência em atividades escolares e a disposição para tarefas de leitura. Por essa razão, a organização do ambiente pedagógico e a clareza das instruções tornam-se elementos indispensáveis para favorecer a aprendizagem.
Nesse sentido, práticas estruturadas, previsíveis e visualmente mediadas mostram-se particularmente eficazes. Tais práticas permitem que o aluno compreenda melhor a sequência das atividades, reduzem a ansiedade e a sobrecarga sensorial e promovem maior segurança diante das tarefas (BOSA, 2024). O uso de apoios visuais, como pictogramas, esquemas, cronogramas ilustrados e textos acompanhados de imagens, auxilia na compreensão e na antecipação de ações, promovendo um ambiente de ensino mais acessível e estimulante.
Além disso, a utilização de recursos multimodais, que integram elementos visuais, auditivos e táteis, contribui para ampliar o engajamento e diversificar os canais de aprendizagem. Essas estratégias alinham-se aos princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), que defende a oferta de múltiplos meios de representação e expressão, favorecendo o acesso ao conhecimento por meio de diferentes estilos cognitivos e sensoriais. Assim, a alfabetização de estudantes com TEA demanda um processo intencionalmente planejado, que equilibre estrutura e flexibilidade, e que valorize tanto os aspectos técnicos da leitura quanto as dimensões funcionais e significativas do aprendizado linguístico.
Dessa forma, o ensino da leitura e da escrita no TEA deve ser concebido como um processo integrador, que articule cognição, linguagem, afetividade e sensorialidade.
A abordagem pedagógica deve favorecer o desenvolvimento das habilidades de compreensão, interpretação e uso funcional da leitura, transformando o ato de ler em uma ferramenta de comunicação, expressão e autonomia. Como afirmam Beckerson et al. (2024), a aprendizagem significativa ocorre quando o ensino da linguagem escrita se torna contextualizado e experiencial, permitindo que o sujeito autista atribua sentido ao texto e o relacione às situações reais de sua vida cotidiana.
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Práticas pedagógicas e estratégias de alfabetização funcional no TEA
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A alfabetização funcional no contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA) requer metodologias pedagógicas que articulem o ensino sistemático da leitura e da escrita com a aplicação prática e significativa do conhecimento. Essa integração entre o aprender e o fazer é essencial para que a aprendizagem linguística se torne funcional, isto é, relevante e aplicável às demandas do cotidiano. De acordo com Prahl (2024), a utilização de textos e materiais extraídos da realidade concreta dos alunos com TEA como bilhetes, e-mails, listas de compras e instruções de tarefas mostrou-se uma estratégia eficaz para promover a motivação, o engajamento e a compreensão leitora.
A autora desenvolveu o programa Functional Reading Activities to Motivate and Empower (FRAME), que tem como princípio central o uso de atividades de leitura baseadas em situações reais de comunicação. Os resultados do estudo indicam que a relevância social e pessoal dos textos constitui um fator determinante para a generalização das habilidades de leitura e para o fortalecimento da autonomia comunicativa. Quando os aprendizes reconhecem propósito e utilidade imediata na leitura, há maior envolvimento afetivo e cognitivo com a atividade, o que amplia o potencial de retenção e de transferência das aprendizagens para outros contextos (PRAHL, 2024).
De modo semelhante, Konkel (2024) e Melo (2024) argumentam que a inserção de práticas funcionais no currículo escolar amplia as possibilidades de inclusão e autonomia de estudantes com TEA, na medida em que estabelece vínculos diretos entre o conteúdo escolar e a vida cotidiana do aluno. Essa perspectiva está em consonância com o Currículo Funcional Natural (CFN), originalmente proposto por Brown e colaboradores e revisitado por Melo (2024) no contexto brasileiro. O CFN fundamenta-se na ideia de que o ensino deve priorizar habilidades úteis, imediatas e socialmente significativas, baseadas nos interesses e nas necessidades reais do estudante. Assim, as atividades pedagógicas deixam de ser meramente teóricas e passam a contemplar situações que o aluno vivencia no ambiente familiar, escolar e comunitário, tornando a alfabetização um instrumento efetivo de participação social.
Essa visão curricular funcional rompe com o paradigma tradicional da educação padronizada e homogênea, que tende a desconsiderar as singularidades cognitivas e comunicativas dos sujeitos com TEA. Ao contrário, propõe uma educação centrada no aluno, que reconhece suas potencialidades, estilos de aprendizagem e modos próprios de interação com o mundo. Melo (2024) enfatiza que, ao valorizar o ensino de competências práticas — como seguir instruções, compreender avisos, reconhecer símbolos e utilizar recursos escritos para resolver problemas, o educador contribui não apenas para o desenvolvimento cognitivo, mas também para o empoderamento social e emocional do aprendiz.
No campo das tecnologias educacionais, Kurzeja et al. (2024) reforçam a importância do uso do Computer-Assisted Instruction (CAI), uma modalidade de ensino mediada por computadores que associa estímulos visuais, auditivos e interativos para potencializar o aprendizado. A revisão sistemática conduzida pelos autores evidencia que o CAI promove avanços significativos em fluência, compreensão e motivação, especialmente entre alunos com autismo e deficiência intelectual. O feedback imediato e a possibilidade de personalização das atividades tornam o processo de aprendizagem mais dinâmico e adaptável ao ritmo de cada estudante.
As tecnologias digitais, quando aliadas à pedagogia funcional, possibilitam a simulação de situações reais de leitura e escrita, permitindo que os alunos com TEA desenvolvam competências em contextos virtuais que refletem desafios da vida cotidiana. Além disso, o uso de softwares educativos, aplicativos e jogos interativos favorece a atenção, reduz a dispersão e amplia o interesse pelas atividades de leitura, aspectos frequentemente comprometidos no espectro autista (KURZEJA et al., 2024).
No contexto nacional, Rosa e Cantero (2024) destacam que o sucesso das práticas de alfabetização funcional no TEA depende de uma abordagem interdisciplinar e colaborativa, na qual escola, família e profissionais especializados atuam de maneira integrada. A articulação entre professores, psicólogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais possibilita uma visão ampliada das necessidades do estudante e favorece a adaptação das estratégias pedagógicas. Essa cooperação contribui para a criação de planos educacionais individualizados, que respeitam o perfil cognitivo, sensorial e emocional de cada aluno, resultando em um processo de aprendizagem mais humanizado e eficaz.
Complementarmente, Costa et al. (2025) reforçam que o ensino de habilidades funcionais como a leitura de placas, o reconhecimento de instruções básicas, o uso de transporte público, o preenchimento de formulários e o entendimento de normas de convivência é fundamental para o desenvolvimento da independência e da autonomia social de crianças e jovens com TEA. A alfabetização, nesse sentido, deve ser concebida como uma ferramenta de inclusão e participação comunitária, capaz de preparar o indivíduo para lidar com situações do cotidiano e exercer seus direitos de forma plena.
Essas aprendizagens práticas, quando incorporadas de maneira sistemática às rotinas escolares, transformam o processo de alfabetização em uma experiência dinâmica, contextualizada e significativa. O ensino passa a valorizar não apenas o domínio técnico da leitura e da escrita, mas também o uso funcional da linguagem como meio de comunicação, interação e resolução de problemas. Ao integrar práticas funcionais, tecnologias assistivas e metodologias colaborativas, a escola assume um papel central na promoção da autonomia, da autoestima e da dignidade das pessoas com TEA, cumprindo, assim, sua função social e inclusiva (PRAHL, 2024; MELO, 2024; KURZEJA et al., 2024; ROSA; CANTERO, 2024; COSTA et al., 2025).
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Desafios e perspectivas para a inclusão escolar de pessoas com TEA
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Apesar dos avanços teóricos e metodológicos identificados na literatura contemporânea, a efetivação de práticas inclusivas que contemplem a alfabetização funcional no Transtorno do Espectro Autista (TEA) ainda enfrenta desafios expressivos no contexto educacional brasileiro. A distância entre o discurso teórico da inclusão e sua aplicação prática nas salas de aula evidencia uma fragilidade estrutural, formativa e política que limita o alcance de propostas pedagógicas realmente transformadoras (ROSA; CANTERO, 2024; MELO, 2024).
Entre os principais obstáculos, destaca-se a insuficiente formação docente voltada às especificidades do autismo. Muitos professores ainda relatam dificuldade em compreender as particularidades cognitivas, linguísticas e sensoriais dos estudantes com TEA, o que resulta em práticas pedagógicas generalistas e pouco eficazes. A ausência de capacitação continuada e de espaços formativos que articulem teoria e prática impede que o professor desenvolva estratégias de ensino diversificadas, adaptadas ao perfil de cada aluno. Como ressaltam Rosa e Cantero (2024), a inclusão exige um docente reflexivo e preparado para atuar com base na singularidade, na flexibilidade metodológica e na valorização das potencialidades individuais.
Outro entrave relevante refere-se à escassez de materiais didáticos acessíveis e adaptados. Grande parte dos recursos pedagógicos disponíveis foi elaborada segundo padrões tradicionais de ensino da leitura e da escrita, desconsiderando as necessidades específicas de estudantes com TEA, como o uso de linguagem concreta, recursos visuais e estruturação previsível das atividades. Melo (2024) enfatiza que a criação de materiais contextualizados, com base em conteúdos funcionais e socialmente significativos, é essencial para o desenvolvimento de aprendizagens duradouras e aplicáveis à realidade cotidiana desses alunos. A ausência desses recursos pedagógicos contribui para a manutenção de práticas pouco inclusivas, centradas na decodificação mecânica, sem promover compreensão ou uso funcional da leitura.
Adicionalmente, observa-se uma dissonância entre as políticas públicas de inclusão e a realidade concreta das escolas brasileiras. Embora documentos como a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2020) assegurem o direito à educação de qualidade para todos, muitas instituições de ensino ainda enfrentam carência de profissionais especializados, infraestrutura inadequada e turmas superlotadas. Essas limitações estruturais comprometem a implementação de práticas pedagógicas personalizadas, o acompanhamento contínuo e a interdisciplinaridade — aspectos fundamentais para o sucesso da alfabetização funcional de estudantes com TEA.
Nesse cenário, torna-se urgente investir em formação continuada de professores, tanto inicial quanto em serviço, a fim de que o corpo docente possa desenvolver competências técnicas, teóricas e emocionais para lidar com a diversidade. Tal investimento deve ser acompanhado por políticas públicas consistentes, que promovam condições materiais, humanas e pedagógicas para a inclusão, estimulando práticas educativas baseadas na funcionalidade, na autonomia e na equidade social (BRASIL, 2020; MELO, 2024).
Kurzeja et al. (2024) e Prahl (2024) apontam caminhos promissores ao sugerirem modelos de intervenção integrados, que unam abordagens cognitivas, funcionais e tecnológicas. Essa integração possibilita um ensino mais efetivo e engajador, no qual a aprendizagem da leitura e da escrita é mediada por estratégias explícitas de compreensão, pelo uso de textos funcionais e pelo suporte de tecnologias assistivas. O uso de softwares educacionais, aplicativos interativos e recursos multimodais permite que o ensino seja personalizado, favorecendo a autonomia do aprendiz e ampliando sua capacidade de generalização do conhecimento para situações reais. Essa abordagem integrada potencializa tanto o desenvolvimento acadêmico quanto as habilidades comunicativas e adaptativas, tornando o processo de alfabetização mais inclusivo, motivador e contextualizado (KURZEJA et al., 2024; PRAHL, 2024).
Além do investimento técnico e metodológico, é necessário reconhecer que a alfabetização funcional, no contexto do TEA, transcende o campo pedagógico e adquire um profundo significado social e ético. Quando o indivíduo com autismo é capaz de compreender e utilizar a leitura e a escrita de maneira autônoma, amplia-se não apenas sua capacidade de comunicação e interação, mas também seu direito à participação plena na vida comunitária. A alfabetização funcional, portanto, deve ser concebida como instrumento de emancipação e cidadania, pois permite que o sujeito acesse informações, exerça sua voz social e participe ativamente de decisões que dizem respeito à sua vida.
Nesse sentido, alfabetizar funcionalmente uma pessoa com TEA não se reduz a um objetivo educacional, mas representa um compromisso ético-político com a inclusão, a dignidade e a equidade social.
Ao oferecer meios para que cada indivíduo leia o mundo e nele atue de forma consciente e autônoma, a escola cumpre sua função transformadora e humanizadora, reafirmando que a educação inclusiva não é apenas uma obrigação legal, mas um valor social e moral que sustenta o direito de todos ao aprendizado e à cidadania (ROSA; CANTERO, 2024; BRASIL, 2020; MELO, 2024).
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DISCUSSÃO
A análise da literatura sobre alfabetização funcional no contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA) revela um campo de estudo em expansão, marcado por importantes avanços conceituais e metodológicos, mas ainda permeado por desafios de implementação no cotidiano escolar. A discussão aqui desenvolvida visa integrar os principais achados teóricos apresentados, articulando-os às perspectivas pedagógicas e inclusivas que orientam a formação de leitores e escritores funcionais, capazes de utilizar a linguagem escrita como instrumento de comunicação, autonomia e participação social.
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A alfabetização funcional como prática social e instrumento de inclusão
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A alfabetização, historicamente associada ao processo de decodificação e domínio técnico da leitura e da escrita, vem sendo ressignificada no campo educacional contemporâneo como uma prática social e culturalmente situada, que ultrapassa a mera aquisição de códigos linguísticos. Segundo Soares (2018), alfabetizar não é apenas ensinar a ler e escrever, mas possibilitar ao sujeito a apropriação da linguagem escrita em sua dimensão comunicativa, cognitiva e social, reconhecendo-a como ferramenta de inserção e transformação no mundo. Street (2020) reforça essa compreensão ao destacar que a alfabetização não pode ser tratada como um conjunto neutro de habilidades, pois está intrinsecamente relacionada aos contextos sociais, aos valores culturais e às práticas discursivas nas quais se insere.
Nesse panorama, a alfabetização funcional emerge como uma ampliação necessária do conceito tradicional, ao enfatizar a utilização prática e significativa da leitura e da escrita no cotidiano. Em uma sociedade mediada por múltiplas linguagens e tecnologias, ser alfabetizado funcionalmente implica saber ler o mundo e interagir com ele de forma crítica, utilizando a linguagem para resolver problemas, comunicar-se, exercer direitos e participar ativamente da vida em comunidade. Assim, o ato de ler e escrever deixa de ser um fim em si mesmo e passa a ser um meio de emancipação e autonomia, promovendo o protagonismo e a cidadania dos indivíduos (KONKEL, 2024; MELO, 2024).
Sob essa ótica, a alfabetização funcional assume um caráter profundamente inclusivo e humanizador, pois reconhece as múltiplas formas de aprender e comunicar-se. No caso das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), essa perspectiva é especialmente relevante, uma vez que esses indivíduos apresentam diferentes modos de percepção, processamento e expressão da linguagem. Melo (2024) enfatiza que alfabetizar funcionalmente sujeitos com TEA implica respeitar suas particularidades cognitivas, comunicativas e sensoriais, de modo a promover aprendizagens que façam sentido em suas experiências concretas de vida.
Konkel (2024) complementa essa visão ao defender que a alfabetização funcional, quando aplicada ao público com TEA, deve estar orientada para o desenvolvimento da autonomia e da comunicação significativa, permitindo que o aluno compreenda, produza e utilize informações em diferentes contextos sociais. Trata-se de um processo que articula o conhecimento linguístico ao exercício da cidadania, favorecendo a inclusão e a dignidade humana.
Essa concepção encontra respaldo nas diretrizes da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2020), que reafirma o direito de todos os estudantes à aprendizagem significativa, respeitando suas diferenças e potencialidades. O documento propõe a superação de práticas excludentes e a adoção de estratégias pedagógicas que garantam a participação ativa dos alunos no processo educativo. Assim, alfabetizar funcionalmente uma pessoa com TEA não se restringe ao domínio da leitura e da escrita, mas envolve criar condições para que ela compreenda o sentido social da linguagem e possa utilizá- la como instrumento de interação, expressão e autonomia.
Desse modo, a escola deve assumir o papel de espaço de mediação cultural e de construção de sentidos, em que o ensino da leitura e da escrita esteja vinculado a práticas reais e socialmente relevantes. Ler bilhetes, interpretar mensagens digitais, compreender instruções e identificar sinais tornam-se experiências que extrapolam o ambiente escolar, conectando a aprendizagem à vida cotidiana. Essa relação entre linguagem e experiência concretiza o princípio da alfabetização como prática de cidadania, em que o educando deixa de ser mero receptor de conteúdos e passa a ser protagonista de sua própria aprendizagem, desenvolvendo não apenas competências acadêmicas, mas também capacidades para atuar no mundo com autonomia e dignidade.
Portanto, compreender a alfabetização funcional no contexto do TEA é reconhecer que o processo educativo deve ser inclusivo, contextualizado e significativo, orientado não apenas para a aquisição do código, mas para a ampliação da capacidade de viver, comunicar-se e participar socialmente. Alfabetizar, nesse sentido, é um ato de reconhecimento da alteridade, um compromisso ético com a diferença e uma prática emancipadora que reafirma o direito de todos ao aprendizado e à plena cidadania (SOARES, 2018; STREET, 2020; MELO, 2024; KONKEL, 2024; BRASIL, 2020).
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As especificidades cognitivas e comunicativas no processo de alfabetização de pessoas com TEA
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A literatura especializada tem demonstrado de forma consistente que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado por uma ampla heterogeneidade nos domínios cognitivo, linguístico, emocional e comportamental, o que impacta diretamente os processos de leitura, escrita e compreensão textual (BECKERSON et al., 2024; PERISTERI et al., 2024). Essa diversidade manifesta-se tanto em termos de funcionamento intelectual quanto nas formas de atenção, memória, linguagem e interação social, o que faz com que o percurso de alfabetização varie significativamente entre os indivíduos. Enquanto alguns apresentam habilidades elevadas de decodificação e reconhecimento de palavras, outros enfrentam dificuldades persistentes na compreensão semântica e na generalização do aprendizado para contextos reais de uso da linguagem.
Peristeri, Frantzidis e Andreou (2024) destacam que as dificuldades de compreensão leitora em pessoas com TEA estão frequentemente associadas a déficits em funções executivas, teoria da mente e coesão discursiva. As funções executivas como a memória de trabalho, o controle inibitório e a flexibilidade cognitiva são fundamentais para a integração de informações e a construção de significados ao longo do texto. A teoria da mente, por sua vez, refere-se à capacidade de compreender estados mentais, intenções e emoções de outras pessoas, aspecto essencial para interpretar narrativas e inferir sentidos implícitos. Já a coesão discursiva envolve o entendimento das relações lógicas entre ideias e a organização coerente da informação textual. A limitação em qualquer desses domínios compromete a compreensão global do texto e o uso funcional da leitura, exigindo abordagens pedagógicas que ultrapassem o modelo mecanicista da alfabetização, centrado apenas na decodificação de símbolos.
Nesse contexto, Beckerson et al. (2024) salientam a importância de metodologias cognitivas que estimulem a compreensão ativa e o raciocínio visual. A intervenção Visualizing and Verbalizing (V/V), desenvolvida para promover a criação de imagens mentais durante o ato de ler, revelou-se eficaz ao favorecer a integração entre a linguagem verbal e a representação imagética, permitindo que o leitor com TEA construa significados mais profundos e contextualizados. Essa abordagem demonstra que a leitura, para além do reconhecimento de palavras, requer processos mentais complexos de simbolização e de atribuição de sentido, os quais podem ser potencializados por estratégias que mobilizam múltiplos canais sensoriais.
Além das dimensões cognitivas e linguísticas, os aspectos sensoriais e emocionais exercem papel determinante na aprendizagem de alunos com TEA. Conforme Bosa (2024), muitos desses estudantes apresentam hipersensibilidade ou hipossensibilidade a estímulos visuais, auditivos ou táteis que podem gerar sobrecarga sensorial e dificultar a concentração.
Associadas a isso, as dificuldades de atenção compartilhada, a rigidez comportamental e a necessidade de previsibilidade podem afetar a participação ativa em atividades de leitura e escrita. Nesses casos, o uso de estruturas visuais claras, rotinas previsíveis e recursos gráficos mediadores torna-se fundamental para reduzir a ansiedade e promover o engajamento, criando um ambiente de aprendizagem mais seguro e estimulante.
Essa perspectiva reforça a importância de compreender a alfabetização no TEA como um processo integrado, dinâmico e adaptativo, no qual se entrelaçam cognição, linguagem, afetividade e sensorialidade. O aprendizado não pode ser concebido como um percurso linear, mas como um movimento contínuo de construção de significados que depende da mediação intencional e sensível do educador. Este, por sua vez, precisa reconhecer que a heterogeneidade do espectro demanda estratégias pedagógicas personalizadas, fundamentadas na observação, na escuta e na valorização das potencialidades de cada estudante.
A atuação docente, portanto, deve pautar-se na criação de contextos de aprendizagem significativos, nos quais o conteúdo e a forma se ajustem às especificidades do aluno. Isso implica diversificar metodologias, incorporar recursos visuais e tecnológicos, e promover práticas que articulem a leitura e a escrita a situações concretas do cotidiano. Nessa abordagem, o professor deixa de ser mero transmissor de informações e assume o papel de mediador do desenvolvimento, estimulando a participação, a criatividade e a autonomia do estudante com TEA.
Compreender o processo de alfabetização sob essa ótica significa romper com paradigmas tradicionais de ensino e reconhecer que as diferenças cognitivas e comunicativas não representam limitações, mas formas singulares de aprendizagem. Assim, o desafio da educação inclusiva consiste em adaptar o ensino às necessidades do aluno — e não o aluno às rigidezes do ensino, garantindo que a alfabetização se torne uma experiência funcional, acessível e humanizadora, promotora de dignidade e pertencimento.
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Metodologiasfuncionaisetecnológicas:caminhosparaumaalfabetização significativa
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Os estudos analisados convergem de modo consistente ao evidenciar que as metodologias pedagógicas baseadas na funcionalidade e no significado social da leitura e da escrita são mais eficazes para o processo de alfabetização de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) (PRAHL, 2024; MELO, 2024; KONKEL, 2024). Essas abordagens se fundamentam na premissa de que o aprendizado ocorre de forma mais sólida e duradoura quando o conteúdo está vinculado à realidade concreta e às experiências significativas do sujeito.
Desse modo, a leitura e a escrita deixam de ser compreendidas como habilidades mecânicas e passam a constituir-se como instrumentos de interação, comunicação e autonomia. Nesse contexto, Prahl (2024) apresenta resultados expressivos por meio do programa Functional Reading Activities to Motivate and Empower (FRAME), voltado ao ensino de leitura funcional para jovens e adultos autistas. O estudo demonstra que o uso de textos reais e socialmente relevantes — como mensagens eletrônicas, listas de compras, bilhetes e instruções de tarefas promove maior motivação, engajamento e compreensão. Ao contextualizar o ensino da leitura em situações práticas, o aluno estabelece uma relação de sentido com o material, o que favorece a generalização das habilidades aprendidas e o desenvolvimento da autonomia comunicativa. Prahl (2024) reforça que o valor pedagógico da leitura funcional reside justamente em sua aplicabilidade: o estudante reconhece a utilidade da linguagem escrita em seu cotidiano e, assim, se engaja de forma mais espontânea e significativa no processo de
aprendizagem.
Nessa mesma linha, Konkel (2024) e Melo (2024) defendem que a inserção de práticas funcionais no currículo escolar é uma condição indispensável para a consolidação de uma educação verdadeiramente inclusiva. Ambas as autoras se baseiam nos princípios do Currículo Funcional Natural (CFN), desenvolvido inicialmente por Brown e colaboradores e revisitado por Melo (2024) no contexto brasileiro. O CFN propõe o ensino de habilidades úteis, imediatas e socialmente relevantes, partindo dos interesses e necessidades concretas do aluno, de modo que o conhecimento adquirido tenha valor prático e sentido existencial. Essa proposta rompe com o modelo tradicional de ensino homogêneo e padronizado, ao reconhecer que o processo educativo deve ser individualizado, contextualizado e adaptável às especificidades de cada sujeito.
Dessa forma, o currículo deixa de ser estruturado apenas por conteúdos formais e passa a ser organizado por competências funcionais, aproximando a aprendizagem escolar das demandas reais da vida cotidiana.
No campo tecnológico, Kurzeja et al. (2024) destacam o potencial do Computer- Assisted Instruction (CAI) instrução assistida por computador como estratégia pedagógica inovadora para a alfabetização funcional de pessoas com TEA. Essa abordagem se apoia no uso de recursos digitais interativos que integram estímulos visuais, auditivos e cinestésicos, oferecendo feedback imediato e personalização das atividades conforme o ritmo e o perfil cognitivo de cada aprendiz. As tecnologias assistivas, quando bem planejadas, não apenas ampliam a acessibilidade, mas também possibilitam a simulação de situações cotidianas de leitura e escrita, contribuindo para a generalização das aprendizagens. Além disso, o ambiente digital favorece a redução de barreiras sensoriais e comportamentais, permitindo que o aluno mantenha foco, previsibilidade e controle sobre o processo de aprendizagem — fatores essenciais para o sucesso educacional no TEA.
Entretanto, a literatura ressalta que a eficácia das metodologias funcionais e tecnológicas não depende exclusivamente de suas ferramentas, mas da rede de apoio e cooperação entre os diversos agentes envolvidos no processo educativo. Rosa e Cantero (2024) enfatizam que a alfabetização de pessoas com TEA é mais bem-sucedida quando há colaboração contínua entre escola, família e equipe interdisciplinar, composta por professores, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Essa integração favorece a elaboração de estratégias pedagógicas coerentes e complementares, capazes de articular aspectos cognitivos, emocionais e sociais do desenvolvimento.
Nesse sentido, Costa et al. (2025) destacam que a articulação entre os diferentes contextos de aprendizagem — escolar, familiar e comunitário — é determinante para a consolidação da aprendizagem funcional. As práticas educativas tornam-se mais eficazes quando o que é aprendido na escola é reforçado em casa e vice-versa, criando um continuum de experiências significativas. A interdisciplinaridade e o diálogo entre os profissionais permitem, portanto, uma visão integral do aluno e favorecem o desenvolvimento de estratégias que contemplam suas singularidades e potencialidades.
Dessa forma, compreende-se que a alfabetização funcional no contexto do TEA deve ser entendida como um processo colaborativo, multimodal e experiencial, que integra teoria, prática e afetividade. A combinação de metodologias funcionais, tecnologias assistivas e trabalho interdisciplinar fortalece o protagonismo do aluno, estimula a autonomia e transforma a leitura e a escrita em instrumentos concretos de comunicação e cidadania. Ao reconhecer a funcionalidade da linguagem como via de inclusão, a escola cumpre seu papel social de promover aprendizagens significativas, emancipadoras e humanizadoras, reafirmando o compromisso ético da educação com a diversidade e a dignidade humana (PRAHL, 2024; MELO, 2024; KONKEL, 2024; KURZEJA et al., 2024; ROSA; CANTERO, 2024; COSTA et
al., 2025).
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Desafios e perspectivas: da teoria à prática inclusiva
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Apesar dos avanços teóricos e empíricos identificados nas últimas décadas, a implementação efetiva de práticas pedagógicas voltadas à alfabetização funcional de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) ainda enfrenta desafios estruturais, formativos e políticos no contexto educacional brasileiro. A literatura recente evidencia que a distância entre o discurso da inclusão e a realidade vivenciada nas escolas constitui um dos principais entraves para a consolidação de uma educação verdadeiramente equitativa e transformadora (ROSA; CANTERO, 2024; MELO, 2024).
Um dos obstáculos mais recorrentes é a insuficiente formação docente voltada às especificidades do espectro autista. Muitos professores relatam não se sentirem preparados para lidar com as demandas cognitivas, comunicativas e comportamentais desses alunos, o que acaba por restringir o uso de metodologias diversificadas e estratégias de ensino individualizadas. Rosa e Cantero (2024) destacam que o processo de inclusão exige mais do que boa vontade institucional requer formação continuada, suporte técnico e acompanhamento interdisciplinar, a fim de que o professor desenvolva competências para interpretar, planejar e intervir de maneira pedagógica e humanizada.
Paralelamente, a escassez de materiais didáticos adaptados e acessíveis permanece como fator limitante para a prática docente. Melo (2024) observa que grande parte dos recursos pedagógicos disponíveis ainda está pautada em modelos padronizados de alfabetização, os quais desconsideram as diferenças sensoriais e cognitivas típicas do TEA. A ausência de recursos visuais, de atividades estruturadas e de tecnologias assistivas adequadas contribui para o desinteresse e a desmotivação dos estudantes, prejudicando o desenvolvimento da leitura e da escrita em sua dimensão funcional. Assim, o investimento em materiais contextualizados e multimodais é indispensável para que o processo de alfabetização se torne significativo, participativo e acessível.
Além dos desafios formativos e materiais, há uma lacuna estrutural que se manifesta na incongruência entre as políticas públicas e a realidade cotidiana das escolas. Apesar de o Brasil dispor de marcos legais avançados — como a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2020) —, as condições concretas de implementação dessas políticas são, muitas vezes, precárias. Falta infraestrutura física adequada, equipe multidisciplinar permanente e número reduzido de alunos por sala, elementos fundamentais para a efetivação de práticas verdadeiramente inclusivas. Essa discrepância revela que o princípio da inclusão ainda é, em muitos casos, mais normativo do que efetivo.
Diante desse cenário, é imprescindível que as políticas educacionais avancem da retórica à ação, garantindo investimento contínuo em formação profissional, infraestrutura e inovação pedagógica. O fortalecimento de programas voltados à capacitação docente, à criação de materiais adaptados e ao uso de tecnologias acessíveis é condição necessária para o desenvolvimento de uma alfabetização funcional que considere as singularidades cognitivas, afetivas e sociais dos alunos com TEA.
Kurzeja et al. (2024) e Prahl (2024) apontam que o futuro das pesquisas e das práticas pedagógicas na área deve avançar rumo à integração entre abordagens cognitivas, funcionais e tecnológicas, de modo a criar ambientes de aprendizagem dinâmicos, interativos e contextualizados. Essa articulação interdisciplinar é vista como uma via promissora para promover não apenas a aprendizagem técnica da leitura e da escrita, mas também a compreensão significativa e o uso social da linguagem.
No contexto atual da educação inclusiva, o processo de alfabetização de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) deve ser guiado por um paradigma que valorize a autonomia e a participação ativa do estudante. Neste modelo pedagógico, o aluno é incessantemente estimulado a experimentar, comunicar-se de diversas maneiras e aplicar, na prática, os conhecimentos adquiridos, tornando-se, portanto, o agente principal e ativo de seu próprio processo de alfabetização. Essa abordagem transcende a mera transmissão de conteúdo; visa construir significado e funcionalidade, ligando a aprendizagem às experiências e necessidades tangíveis da vida.
A alfabetização funcional no contexto do TEA deve ser entendida não apenas como um objetivo pedagógico limitado, mas, de maneira mais abrangente e profunda, como uma estratégia essencial para a emancipação social e a promoção da autonomia. Quando um indivíduo com autismo desenvolve a habilidade de compreender, interpretar e utilizar a linguagem escrita de forma autônoma, crítica e funcional, seu acesso ao conhecimento acumulado, sua capacidade de expressão e comunicação (tanto verbal quanto não verbal) se expande significativamente, aumentando, assim, suas oportunidades de inserção plena e participativa na sociedade. O processo de alfabetização, nesse aspecto transformador, transcende amplamente o domínio técnico e mecânico da modificação & decodificação da linguagem. Ele se torna um instrumento essencial de inclusão, reivindicação, dignidade e exercício da cidadania, capacitando uma pessoa com TEA a tomar decisões, seus direitos e traçar sua própria trajetória.
Assim, alfabetizar é, por sua natureza, incluir, considerar e dignificar. Reconhecer, em última análise, que uma educação inclusiva transcende uma simples adaptação metodológica ou um conjunto de técnicas isoladas, constituindo um compromisso ético, político e humano profundo com o respeito à diversidade, a valorização da singularidade de cada aprendizagem e a promoção intransigente da equidade. A alfabetização funcional, assim, constitui um dos métodos mais eficazes e relevantes para a realização de uma educação que realmente emancipa, integra e humaniza.
Ela reitera a importância da escola como um ambiente dinâmico de transformação social, de construção de significados e de realização dos direitos humanos fundamentais, garantindo que cada indivíduo, em sua diversidade, tenha uma oportunidade de desenvolver plenamente seu potencial (ROSA; CANTERO, 2024; MELO, 2024; KURZEJA et al., 2024; PRAHL, 2024; BRASIL, al., 2024; PRAHL, 2024; BRASIL, 2020).
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CONCLUSÃO
A presente pesquisa teve como propósito refletir sobre a alfabetização funcional no contexto do Transtorno do Espectro Autista (TEA), buscando compreender suas especificidades, desafios e potencialidades enquanto prática pedagógica e instrumento de inclusão social. A partir da análise da literatura recente, compreendida entre os anos de 2018 e 2025, e fundamentada em autores como Soares (2018), Street (2020), Melo (2024), Konkel (2024), Prahl (2024) e outros, constatou-se que o conceito de alfabetização deve ser entendido para além da mera decodificação de signos linguísticos. Ele se configura como uma prática social, comunicativa e emancipatória, capaz de promover autonomia, participação e pertencimento no ambiente social e educacional.
Os resultados teóricos evidenciam que a alfabetização funcional representa um dos caminhos mais eficazes e humanizadores para a inclusão de pessoas com TEA, na medida em que privilegia o uso prático e significativo da leitura e da escrita em contextos reais de comunicação. Essa abordagem amplia o papel da linguagem para além do domínio técnico, tornando-a um instrumento de interação, expressão e autonomia. Ao incorporar atividades como a leitura de bilhetes, mensagens, listas, instruções e textos cotidianos, o processo de aprendizagem se torna mais acessível, motivador e contextualizado, favorecendo a generalização das habilidades e a construção de sentido no ato de ler e escrever.
Verificou-se também que o Transtorno do Espectro Autista é marcado por grande heterogeneidade nos domínios cognitivo, linguístico, sensorial e afetivo, o que implica que cada sujeito apresenta um modo singular de aprender. Estudos de Beckerson et al. (2024) e Peristeri et al. (2024) demonstram que, embora muitos indivíduos com TEA apresentem bom desempenho na decodificação e no reconhecimento de palavras, persistem dificuldades relacionadas à compreensão semântica, inferencial e pragmática. Essa dissociação entre leitura técnica e compreensão funcional reforça a necessidade de metodologias que considerem os processos cognitivos, emocionais e sensoriais envolvidos na aprendizagem, promovendo experiências significativas e contextualizadas.
As evidências apresentadas por Prahl (2024), Konkel (2024) e Melo (2024) confirmam a importância de metodologias baseadas na funcionalidade e no significado social da linguagem escrita, as quais se mostraram mais eficazes para o ensino de alunos com TEA.
Programas como o Functional Reading Activities to Motivate and Empower (FRAME), desenvolvidos por Prahl (2024), demonstram que o uso de textos reais e socialmente relevantes aumenta a motivação, a atenção e o engajamento, promovendo não apenas o aprendizado da leitura, mas a compreensão ativa e a aplicação prática do conhecimento.
De forma convergente, o Currículo Funcional Natural (CFN), revisitado por Melo (2024), propõe o ensino de habilidades úteis, imediatas e socialmente significativas, com base nas necessidades e nos interesses de cada aluno. Tais abordagens rompem com a lógica tradicional e homogênea de ensino, valorizando a individualidade, a experiência e o potencial de cada aprendiz.
No campo tecnológico, Kurzeja et al. (2024) destacam a relevância do uso de tecnologias educacionais assistivas, especialmente a instrução assistida por computador (Computer-Assisted Instruction – CAI), que possibilita o ensino personalizado e adaptado ao ritmo e ao perfil sensorial do estudante. Essas ferramentas, ao integrarem estímulos visuais, auditivos e interativos, promovem um ambiente de aprendizagem dinâmico, reduzindo barreiras sensoriais e comportamentais e potencializando a motivação e o envolvimento.
Contudo, a literatura enfatiza que tais tecnologias só atingem seu pleno potencial quando articuladas a práticas colaborativas e interdisciplinares, que envolvem professores, psicólogos, terapeutas e famílias (ROSA; CANTERO, 2024; COSTA et al., 2025). Essa integração assegura a continuidade e a coerência das intervenções, ampliando as oportunidades de generalização e fortalecimento das aprendizagens.
Por outro lado, os resultados também evidenciam importantes desafios estruturais, pedagógicos e políticos que ainda limitam a efetividade da alfabetização funcional para pessoas com TEA. A falta de formação docente especializada, a escassez de materiais didáticos adaptados e a distância entre as diretrizes das políticas públicas e as condições reais das escolas constituem barreiras significativas à prática inclusiva (ROSA; CANTERO, 2024; MELO, 2024). Apesar dos avanços normativos, representados por documentos como a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2020), a execução dessas políticas depende de investimentos contínuos em capacitação docente, infraestrutura escolar e inovação pedagógica.
O êxito da alfabetização funcional, portanto, está diretamente relacionado à consolidação de uma cultura educacional inclusiva que garanta o acesso, a permanência e o desenvolvimento de todos os estudantes.
A partir dessa análise, reafirma-se que a alfabetização funcional no contexto do TEA deve ser concebida como um processo dinâmico, contextualizado e interdisciplinar, que articula cognição, linguagem, sensorialidade e afetividade em prol de aprendizagens significativas.
Mais do que um objetivo curricular, trata-se de uma estratégia de emancipação social, capaz de possibilitar que o sujeito com autismo compreenda, comunique-se e atue de maneira autônoma e crítica em seu meio social.
Assim, alfabetizar funcionalmente não significa apenas ensinar a ler e escrever, mas ensinar a viver com dignidade, autonomia e pertencimento, reconhecendo o aluno em sua singularidade e potencialidade.
Conclui-se, portanto, que a alfabetização funcional transcende em muito o campo técnico e instrumental do ensino da leitura e da escrita, assumindo uma dimensão intrinsecamente ética, política e humanizadora. Ela não se esgota na aquisição de habilidades, mas se consolida como um processo de construção de sentidos e de (re)conhecimento de si e do outro. Ao possibilitar o acesso ao conhecimento plural e à comunicação significativa, ela reafirma a função social da escola como um lócus privilegiado de inclusão das diferenças e de transformação social. Alfabetizar, nessa perspectiva, é um ato de inclusão, de reconhecimento da singularidade e de dignificação da existência.
É garantir a cada pessoa com TEA o direito fundamental de narrar sua própria história, de exercer sua cidadania plena e de participar ativamente dos jogos linguísticos e sociais que tecem a vida em comunidade. Dessa forma, consolida-se seu desenvolvimento integral como um sujeito de direito, produtor de cultura e de conhecimento, em toda a sua complexidade histórica, cognitiva e afetiva.
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