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Luciana Cruz de Freitas 2
AVALIAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: COMO AS AVALIAÇÕES EXTERNAS CONSIDERAM (OU NÃO) O LETRAMENTO MATEMÁTICO
Resumo
Este artigo investiga como as avaliações externas em larga escala consideram, ou negligenciam, o letramento matemático no contexto das políticas públicas educacionais brasileiras. O objetivo central consiste em analisar a presença e a abordagem do letramento matemático nos principais instrumentos de avaliação externa utilizados no país, com ênfase nas suas implicações pedagógicas e políticas. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa, de natureza documental, com base na análise de matrizes de referência, documentos oficiais e relatórios de desempenho divulgados por órgãos governamentais. Os resultados indicam que, embora os discursos institucionais reconheçam a importância do letramento matemático, sua efetiva incorporação nas avaliações externas ainda é limitada, centrando-se em habilidades operatórias e na resolução de problemas descontextualizados. Observa-se uma tensão entre as finalidades pedagógicas e os interesses de accountability (cobranças de resultados) que orientam essas avaliações, o que compromete uma formação matemática mais crítica e significativa. Conclui-se que as políticas públicas precisam revisar os critérios de avaliação adotados, a fim de promover práticas avaliativas que valorizem o desenvolvimento do letramento matemático e contribuam efetivamente para a melhoria da aprendizagem.
Palavras-chave: letramento matemático. avaliação externa. políticas públicas. educação matemática. qualidade da educação.
1 Aluna de mestrado pela EBWU.
2 Orientadora, professora, doutora.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, o Brasil tem investido em políticas públicas de avaliação externa em larga escala, com o objetivo de diagnosticar a qualidade da educação básica e subsidiar decisões educacionais. Essas avaliações, como a Prova Brasil (atualmente incorporada ao Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB) e exames estaduais como o SAEMS (Sistema de Avaliação da Educação de Mato Grosso do Sul), tornaram-se instrumentos centrais na condução de políticas educacionais, influenciando desde a formulação curricular até práticas pedagógicas nas escolas.
Nesse cenário, o debate sobre o letramento matemático ganha especial relevância. Esse conceito ultrapassa a mera capacidade de realizar operações matemáticas ou resolver problemas de forma mecânica; ele envolve a mobilização de conhecimentos matemáticos em situações contextualizadas, exigindo habilidades de leitura, interpretação, argumentação e tomada de decisão com base em dados e informações quantitativas. Em outras palavras, trata-se de compreender e utilizar a matemática como uma prática social, relacionada ao cotidiano dos sujeitos.
No entanto, a incorporação do letramento matemático como princípio norteador das avaliações externas ainda é um ponto em aberto. Há indícios de que muitos instrumentos avaliativos priorizam conteúdos procedimentais em detrimento de competências mais amplas, como a resolução de problemas em contextos reais, o raciocínio lógico, a comunicação matemática e o pensamento crítico. Essa lacuna pode comprometer o objetivo de promover uma educação matemática mais significativa e alinhada às demandas contemporâneas.
Diante disso, a presente pesquisa busca investigar de que forma as avaliações externas, como a Prova Brasil/SAEB e o SAEMS, abrangem ou deixam de incorporar os princípios do letramento matemático. A análise considera não apenas os conteúdos abordados, mas também o tipo de competência matemática demandada pelas questões e o modo como elas se relacionam com situações do mundo real. Ao refletir sobre esses aspectos, espera-se contribuir para a discussão sobre os limites e as possibilidades das políticas de avaliação em promover uma educação matemática mais crítica, contextualizada e voltada para a formação de cidadãos atuantes.
REFERENCIAL TEÓRICO
Para compreender de forma mais aprofundada a relação entre avaliação externa e letramento matemático, é necessário recorrer a uma base teórica que articule os campos da educação matemática, das políticas públicas educacionais e da avaliação em larga escala. O conceito de letramento matemático, por exemplo, é amplamente discutido em documentos internacionais como os da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), especialmente no contexto do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), que define o letramento matemático como a capacidade de formular, empregar e interpretar a matemática em uma variedade de contextos, destacando o papel dessa habilidade na vida cotidiana, no trabalho e como cidadania.
Autores como Skovsmose (2000), D’Ambrosio (2001) e Barbosa (2004) também contribuem para a compreensão do letramento matemático como uma prática social, que envolve dimensões críticas e emancipatórias. Nessa perspectiva, a matemática deixa de ser vista apenas como um conjunto de técnicas e procedimentos abstratos, e passa a ser entendida como uma linguagem e uma ferramenta para compreender e atuar sobre o mundo.
No campo da avaliação, estudiosos como Freitas (2012) e Bonamino (2002) discutem os impactos das avaliações externas na organização do trabalho escolar, bem como suas limitações na aferição de aprendizagens complexas. Embora essas avaliações forneçam dados importantes para diagnóstico e formulação de políticas, muitas vezes operam com uma visão restrita do conhecimento, o que pode limitar seu potencial formativo.
Ao articular esses referenciais, esta pesquisa busca construir uma análise crítica sobre o modo como os princípios do letramento matemático são ou não são contemplados nas avaliações externas em larga escala no Brasil. A intenção é identificar não apenas lacunas, mas também possibilidades de avanço rumo a uma avaliação mais comprometida com uma educação matemática voltada à cidadania e à justiça social.
DESENVOLVIMENTO
Letramento matemático: conceito e implicações educacionais
Em um mundo que nos bombardeia com dados, gráficos e números a cada instante, a matemática se revela muito mais do que uma disciplina escolar: é uma linguagem vital, um código essencial para navegar na complexidade da vida moderna. No entanto, para muitos, a matemática ainda soa como um idioma estrangeiro, distante da realidade e desprovido de significado. Por que essa disciplina, tão presente em nosso cotidiano, ainda evoca sentimentos de aversão e incompreensão em tantos estudantes?
A resposta, talvez, resida na forma como a matemática tem sido ensinada e aprendida ao longo dos anos, priorizando a memorização de fórmulas e a aplicação mecânica de algoritmos em detrimento da compreensão conceitual e da conexão com o mundo real. Diante desse cenário, o letramento matemático surge como um farol, uma nova perspectiva que nos convida a repensar o papel da matemática na educação e na sociedade.
O letramento matemático, em sua essência, é a capacidade de traduzir o mundo que nos cerca em linguagem matemática e, a partir dessa tradução, tomar decisões conscientes e agir de forma eficaz. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2003, definiu o letramento matemático como “a capacidade de um indivíduo de formular, empregar e interpretar a matemática em uma variedade de contextos, incluindo raciocínio matemático, utilizando conceitos, procedimentos, fatos e ferramentas matemáticas para descrever, explicar e predizer fenômenos” (OCDE, 2003, p. 24).
Essa definição, por si só, já representa uma ruptura com a visão tradicional da alfabetização matemática, que se limitava ao domínio de operações básicas e à memorização de fórmulas. O letramento matemático nos convida a ir além, a desenvolver nos alunos a capacidade de:
Resolver problemas autênticos: Utilizar a matemática para encontrar soluções criativas e eficazes para desafios reais, que se apresentam em diferentes contextos da vida cotidiana, do trabalho e da cidadania.
Interpretar informações quantitativas: Compreender gráficos, tabelas, estatísticas e outras representações numéricas, identificando padrões, tendências e relações significativas.
Fazer julgamentos fundamentados: Avaliar criticamente informações quantitativas, questionando premissas, identificando vieses e tomando decisões conscientes com base em evidências.
Comunicar conclusões de forma eficaz: Expressar ideias matemáticas de forma clara, coerente e persuasiva, utilizando diferentes linguagens (oral, escrita, gráfica) e adaptando a comunicação ao público-alvo.
Em suma, o letramento matemático nos capacita a enxergar o mundo com um olhar matemático, a tomar decisões informadas e a agir de forma eficaz para transformar a nossa realidade.
No contexto brasileiro, a discussão sobre o letramento matemático ganha ainda mais força, diante dos desafios históricos que permeiam o nosso sistema educacional, marcados pela desigualdade social, pela falta de recursos e pela desvalorização da profissão docente. Autores como Ubiratan D’Ambrosio e Magda Soares, pioneiros e visionários, trouxeram perspectivas cruciais para enriquecer esse debate, propondo abordagens que valorizam a contextualização, a diversidade cultural e a funcionalidade do conhecimento matemático.
Ubiratan D’Ambrosio, com sua revolucionária proposta da etnomatemática, nos convida a questionar a visão eurocêntrica e universalizante da matemática, reconhecendo que existem diferentes formas de pensar matematicamente, intrinsecamente ligadas às práticas culturais, às atividades econômicas e às experiências sociais de diferentes grupos e comunidades. A etnomatemática, como ele mesmo define, “é o modo, a arte ou a técnica de explicar, de entender, de se situar no contexto sociocultural” (D’Ambrosio, 1996, p. 19).
Ao valorizar os saberes matemáticos presentes nas manifestações culturais, nas atividades artesanais, nas práticas agrícolas e em outras dimensões da vida cotidiana, a etnomatemática nos ajuda a construir uma educação matemática mais inclusiva, que respeite a diversidade cultural e que promova a justiça social. “É preciso reconhecer que a matemática não é uma disciplina neutra, mas sim um produto cultural, que reflete os valores, as crenças e as necessidades de diferentes grupos sociais” (D’Ambrosio, 1996, p. 47).
Magda Soares, por sua vez, nos oferece uma reflexão profunda sobre a relação entre letramento e alfabetização, argumentando que o letramento matemático envolve tanto o domínio da linguagem matemática quanto a sua funcionalidade, ou seja, a capacidade de mobilizar esse conhecimento para compreender e transformar a realidade. “O letramento é mais que alfabetização, é o desenvolvimento de capacidades de leitura e de escrita que permitem ao indivíduo participar ativamente das práticas sociais que envolvem a língua escrita” (Soares, 2004, p. 17).
Para Soares, o letramento matemático não se restringe aos muros da escola, mas atravessa as práticas sociais, permeando o nosso dia a dia e influenciando a forma como interagimos com o mundo. Desenvolver o letramento matemático, portanto, implica em formar cidadãos críticos, autônomos e capazes de utilizar a matemática como uma ferramenta para a tomada de decisões, para a resolução de problemas e para a participação ativa na vida social, política e econômica do país.
Políticas públicas de avaliação no Brasil
Desde a década de 1990, o Brasil tem implementado um conjunto significativo de políticas públicas voltadas à avaliação externa em larga escala. O objetivo primordial dessas políticas é monitorar a qualidade da educação básica e subsidiar a formulação de políticas educacionais eficazes. Um dos marcos iniciais dessa política foi a instituição do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
O SAEB representou um passo crucial na direção da avaliação sistemática da educação no país. Posteriormente, essa iniciativa foi desdobrada em avaliações mais específicas, como a Prova Brasil, direcionada ao Ensino Fundamental, e a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), focada nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Essas avaliações passaram a desempenhar um papel estratégico na gestão da educação, exercendo influência sobre diversos aspectos do sistema educacional.
Um dos principais desafios apontados por pesquisadores como Freitas (2012) e Bonamino (2002) diz respeito ao tipo de conhecimento que as avaliações valorizam. Muitas vezes, elas se concentram na aferição de habilidades procedimentais e operatórias, deixando de lado dimensões mais amplas do conhecimento, como a capacidade de interpretação, argumentação e resolução de problemas em contextos significativos — justamente os pilares do letramento matemático.
Essa limitação pode ter implicações significativas na prática pedagógica, uma vez que o foco em resultados mensuráveis e a pressão por desempenho podem induzir práticas reducionistas, voltadas à “preparação para a prova”, em detrimento de uma aprendizagem mais ampla e significativa. Como resultado, os alunos podem desenvolver uma visão estreita da disciplina, deixando de explorar suas potencialidades e conexões com o mundo real.
Além disso, essa abordagem pode afetar negativamente a motivação e o engajamento dos estudantes, que podem passar a ver a Matemática como um conjunto de regras e procedimentos a serem memorizados, em vez de uma ferramenta poderosa para compreender e transformar a realidade. Portanto, é fundamental que as avaliações sejam diversificadas e contextualizadas, de modo a valorizar não apenas o domínio de habilidades específicas, mas também a capacidade de aplicá-las de forma criativa e significativa.
Dessa forma, é possível promover uma aprendizagem mais ampla e significativa, que prepare os alunos para lidar com desafios complexos e reais, e não apenas para responder a questões padronizadas. Isso requer uma mudança de perspectiva em relação às práticas avaliativas, que devem ser vistas como uma oportunidade para promover a aprendizagem, e não apenas como um meio de medir o desempenho.
Essa mudança pode ser alcançada por meio da implementação de avaliações mais contextualizadas e diversificadas, que valorizem a capacidade de interpretação, argumentação e resolução de problemas em contextos significativos. Além disso, é fundamental que os professores sejam apoiados e capacitados para desenvolver práticas pedagógicas que promovam a aprendizagem significativa e o letramento matemático.
Com essa abordagem, é possível criar um ambiente de aprendizagem mais estimulante e desafiador, que prepare os alunos para lidar com os desafios do século XXI e para se tornarem cidadãos críticos e engajados.
Nesse sentido, é fundamental refletir sobre como as avaliações em larga escala podem influenciar a prática pedagógica e a formação dos estudantes, incorporando (ou não) os princípios do letramento matemático. Isso implica considerar se essas avaliações estão contribuindo para a construção de uma escola mais comprometida com a formação de sujeitos críticos, autônomos e capazes de atuar com competência em uma sociedade cada vez mais permeada por informações quantitativas.
A incorporação dos princípios do letramento matemático nas avaliações sugere uma abordagem que vai além da mera resolução de problemas matemáticos, envolvendo a capacidade de interpretar, analisar e tomar decisões baseadas em dados quantitativos. Isso é especialmente relevante em um mundo onde as informações numéricas são onipresentes e influenciam desde decisões cotidianas até políticas públicas.
Uma escola que se compromete com a formação de sujeitos críticos e autônomos deve, portanto, promover uma educação matemática que valorize não apenas a compreensão de conceitos matemáticos, mas também a capacidade de desenvolver de maneira significativa. Isso inclui potencializar habilidades como a interpretação de gráficos, a compreensão de estatísticas e a capacidade de avaliar criticamente a informação quantitativa apresentada em diferentes contextos.
Ao refletir sobre como as avaliações podem incorporar esses princípios, é essencial considerar as implicações para a prática pedagógica. Isso pode envolver a reformulação de currículos e métodos de ensino para enfatizar a aplicação prática da matemática, bem como a promoção de uma cultura de questionamento e análise crítica dentro da sala de aula.
Dessa forma, a construção de uma escola mais comprometida com a formação de sujeitos críticos e autônomos não apenas melhora a educação matemática, mas também contribui para a formação de cidadãos mais informados e capazes de participar ativamente na sociedade.
As avaliações externas e o letramento matemático: uma análise da Prova Brasil/SAEB e do SAEMS
As avaliações externas, como a Prova Brasil/SAEB e o SAEMS, desempenham um papel crucial na aferição da qualidade da educação no Brasil, especialmente em relação ao letramento matemático. Embora haja avanços significativos na estruturação de matrizes de referência e descritores que orientam a elaboração de itens com base em competências e habilidades específicas, é fundamental questionar se esses instrumentos estão efetivamente capturando a essência do letramento matemático.
O letramento matemático vai além da simples resolução de problemas matemáticos; envolve a capacidade de aplicar conceitos matemáticos em contextos variados, analisar informações, tomar decisões informadas e resolver problemas de maneira eficaz. Portanto, é essencial que as avaliações externas sejam capazes de medir não apenas o conhecimento matemático, mas também a capacidade dos estudantes de aplicar esse conhecimento de forma prática e significativa.
A Prova Brasil, integrada ao SAEB, e o SAEMS são instrumentos importantes para avaliar o desempenho dos estudantes em matemática. No entanto, é necessário analisar se as matrizes de referência e os descritores utilizados nessas avaliações estão alinhados com as demandas do letramento matemático. Isso implica examinar se os itens das provas estão contextualizados, se exigem dos estudantes a aplicação de conceitos matemáticos em situações reais e se avaliam habilidades como raciocínio, argumentação e resolução de problemas de forma eficaz.
Além disso, é crucial considerar como os resultados dessas avaliações são utilizados para informar práticas pedagógicas e políticas educacionais. A análise dos resultados pode fornecer insights valiosos sobre as lacunas no ensino e na aprendizagem da matemática, permitindo que educadores e formuladores de políticas implementem intervenções direcionadas para melhorar o letramento matemático dos estudantes.
Portanto, ao ampliar a discussão sobre as avaliações externas e o letramento matemático, é fundamental não apenas analisar a estrutura e o conteúdo das avaliações como a Prova Brasil/SAEB e o SAEMS, mas também considerar como esses instrumentos podem ser aprimorados para melhor capturar a complexidade do letramento matemático e contribuir para a melhoria da educação matemática no Brasil.
A Prova Brasil é uma avaliação educacional aplicada a estudantes do 5º e 9º anos do Ensino Fundamental, com foco em quatro eixos principais: “Números e Operações”, “Espaço e Forma”, “Grandezas e Medidas” e “Tratamento da Informação”. Embora esses eixos tenham o potencial de incluir situações contextualizadas e habilidades cognitivas diversas, muitos itens da prova ainda se concentram na aplicação mecânica de algoritmos e resolução de questões descontextualizadas.
Essa abordagem limita a avaliação de competências importantes, como argumentação matemática, leitura crítica e construção de sentidos. Estudos recentes, como os de Souza (2016) e Carvalho (2018), destacam que, apesar de existirem questões que se aproximam do letramento matemático, como interpretação de gráficos e problemas cotidianos, elas são minoria. A estrutura da prova, voltada para escalas de proficiência e comparações entre redes de ensino, muitas vezes restringe a inclusão de questões abertas ou complexas, limitando a avaliação de habilidades como comunicação matemática e pensamento crítico.
Para humanizar a Prova Brasil, seria necessário repensar sua estrutura e incluir questões que promovam a aplicação de conceitos matemáticos em contextos reais, estimulando a argumentação e o pensamento crítico. Isso poderia ser alcançado por meio da incorporação de questões abertas e problemas que exijam a mobilização de diferentes habilidades cognitivas. Além disso, a avaliação poderia ser diversificada, incluindo não apenas questões objetivas, mas também tarefas que permitam aos estudantes demonstrar sua capacidade de comunicação matemática e resolução de problemas de forma mais autônoma.
Dessa forma, a Prova Brasil poderia se tornar uma ferramenta mais eficaz para avaliar a proficiência dos estudantes em matemática, considerando não apenas a aplicação de fórmulas e algoritmos, mas também a capacidade de pensar criticamente e resolver problemas de forma contextualizada. Isso contribuiria para uma educação matemática mais significativa e alinhada com as necessidades do século XXI.
Um cenário análogo é observado nas avaliações realizadas em âmbito estadual, como o SAEMS (Sistema de Avaliação da Educação de Mato Grosso do Sul), que, apesar de se fundamentar nas diretrizes curriculares locais e buscar alinhar-se às competências preconizadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tende a priorizar, na elaboração de seus itens, habilidades operacionais e conteudistas. Embora haja tentativas de incorporar situações-problema contextualizadas, o modelo prevalecente ainda se apoia em uma lógica tradicional de avaliação, centrada na obtenção da resposta correta e na classificação dos estudantes conforme seus níveis de desempenho.
Essa abordagem acaba por distanciar as avaliações externas dos princípios basilares do letramento matemático, notadamente no que concerne à articulação entre o conhecimento escolar e os contextos sociais, culturais e econômicos em que os estudantes estão inseridos. Além disso, a limitada diversidade nos formatos dos itens, predominantemente de múltipla escolha, dificulta a avaliação da capacidade dos alunos de argumentar, justificar suas escolhas ou explorar diferentes estratégias de resolução de problemas.
Portanto, a análise das avaliações da Prova Brasil/SAEB e do SAEMS sugere que, embora as matrizes dessas avaliações contenham espaço para o desenvolvimento do letramento matemático, esse potencial permanece subexplorado na prática. A ênfase excessiva na mensurabilidade, na comparabilidade dos resultados e na padronização tende a simplificar a complexidade daquilo que é avaliado, em detrimento de uma abordagem mais formativa e significativa da matemática. Isso sinaliza a necessidade de repensar os critérios de construção e seleção de itens, bem como de incorporar modalidades mais diversificadas de avaliação que valorizem o uso da matemática como instrumento de leitura e intervenção no mundo.
A mudança nessa direção implica não apenas uma revisão das práticas de avaliação, mas também uma redefinição dos objetivos educacionais, de modo a priorizar a formação de indivíduos capazes de aplicar a matemática de forma significativa em suas vidas. Isso requer uma abordagem mais holística e contextualizada da avaliação, que considere as diversas dimensões do letramento matemático e promova uma compreensão mais profunda da disciplina.
Dessa forma, torna-se possível avançar em direção a uma educação matemática mais relevante e eficaz, que prepare os estudantes para os desafios do mundo contemporâneo e os habilite a utilizar a matemática como uma ferramenta poderosa para compreender e agir sobre a realidade.
METODOLOGIA
A presente pesquisa é de natureza qualitativa e utilizou a análise documental como principal estratégia metodológica. Esse tipo de abordagem é especialmente adequado quando se busca compreender discursos, representações e intenções subjacentes a documentos oficiais e institucionais, bem como identificar padrões, ausências e recorrências que evidenciem determinadas perspectivas educacionais.
O corpus documental foi composto por fontes primárias e secundárias. As fontes primárias incluem os documentos produzidos pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), com destaque para as matrizes de referência do SAEB, os descritores das edições da Prova Brasil realizadas entre 2007 e 2021, além de relatórios técnicos e boletins pedagógicos que acompanham os resultados dessas avaliações. Também foram analisadas as matrizes e cadernos de prova do SAEMS, no intuito de estabelecer uma comparação entre avaliações federais e estaduais.
Como fontes secundárias, foram consultados artigos científicos, dissertações e teses que discutem criticamente a relação entre avaliação externa e letramento matemático, especialmente aqueles que tratam das concepções de currículo, práticas avaliativas e implicações pedagógicas das políticas de accountability.
A análise dos documentos seguiu um roteiro de categorização baseado nos objetivos da pesquisa. Foram observados, principalmente, os seguintes aspectos:
-
Quais habilidades são mais frequentemente avaliadas nos instrumentos analisados, especialmente no campo da matemática;
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Se há foco em contextos reais, ou seja, se os itens propõem situações do cotidiano ou socialmente relevantes;
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Em que medida os itens demandam interpretação de informações como gráficos, tabelas, textos verbais ou não verbais;
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Quais competências estão sendo promovidas pelos itens, com especial atenção àquelas relacionadas ao letramento matemático, tais como a capacidade de argumentar, comunicar ideias matemáticas, resolver problemas abertos e tomar decisões com base em dados.
A análise foi orientada por uma perspectiva crítica, que considera que as escolhas presentes nas avaliações não são neutras, mas refletem concepções de conhecimento, ensino e aprendizagem que afetam diretamente as práticas pedagógicas nas escolas. Ao privilegiar determinadas habilidades em detrimento de outras, as avaliações influenciam o que é ensinado, como é ensinado e com que finalidade.
O objetivo central da metodologia, portanto, não foi quantificar a presença de itens com determinada característica, mas compreender qualitativamente o perfil das habilidades e competências valorizadas pelas avaliações externas, identificando os pontos de aproximação e distanciamento em relação aos princípios do letramento matemático.
Quadro – Critérios de análise dos instrumentos avaliativos com base no letramento matemático
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Critério de Análise |
Descrição |
Indicadores observáveis nos documentos |
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Frequência de habilidades avaliadas |
Identificação das habilidades mais recorrentes nas provas de matemática |
Itens por descritor; agrupamento por eixo temático; grau de complexidade |
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Contextualização dos itens |
Verificação da presença de situações-problema ligadas a contextos reais e socialmente relevantes |
Presença de enunciados com situações do cotidiano ou temas atuais |
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Demanda de interpretação e leitura crítica |
Análise do grau de exigência cognitiva para interpretar dados, textos ou representações |
Leitura de gráficos, tabelas, imagens, problemas com múltiplas informações |
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Mobilização de competências associadas ao letramento |
Avaliação da presença de elementos como raciocínio lógico, argumentação e tomada de decisão |
Itens que exigem justificativas, escolha entre alternativas com base em dados |
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Formato e estrutura dos itens |
Consideração do tipo de item (fechado, aberto, múltipla escolha) e sua adequação à proposta |
Variedade de formatos; espaço para expressão do aciocínio do estudante |
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises realizadas ao longo desta pesquisa evidenciam uma tensão central nas políticas de avaliação externa em larga escala no Brasil: embora haja, nos discursos oficiais, uma valorização crescente das competências e habilidades associadas ao letramento matemático, essa valorização ainda não se concretiza de forma consistente na prática avaliativa. Tanto nas avaliações federais, como a Prova Brasil/SAEB, quanto em instrumentos estaduais, como o SAEMS, observa- se uma predominância de questões centradas em procedimentos algorítmicos, operações básicas e reconhecimento de padrões formais, com limitada inserção de contextos significativos.
Essa dissociação entre discurso e prática revela um desafio importante: o de fazer com que as avaliações realmente reflitam os princípios de uma educação matemática voltada à formação cidadã. A pouca ênfase em contextos reais, em situações-problema complexas e em habilidades interpretativas limita o potencial formativo das avaliações externas e restringe sua capacidade de induzir mudanças curriculares mais profundas. Nesse cenário, corre-se o risco de perpetuar uma visão reducionista da matemática, desvinculada das práticas sociais e da vida cotidiana dos estudantes justamente o oposto do que propõe o letramento matemático.
Além disso, a lógica de padronização e de responsabilização das escolas por resultados mensuráveis tende a reforçar práticas pedagógicas voltadas à preparação para as provas, em detrimento de propostas mais investigativas, reflexivas e contextualizadas. Para romper com essa lógica, é necessário repensar os próprios fundamentos que orientam a construção das matrizes de avaliação, os formatos dos itens e os critérios de correção, aproximando-os das diretrizes curriculares expressas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que reconhece o papel formativo da matemática e sua importância na construção da autonomia e da criticidade dos sujeitos.
A promoção de um letramento matemático real exige, portanto, um alinhamento mais efetivo entre currículo, avaliação e formação docente. As avaliações externas não devem ser vistas apenas como mecanismos de controle, mas como instrumentos pedagógicos que contribuem para o aprimoramento do ensino e da aprendizagem. Isso implica investir na formação dos profissionais da educação para que compreendam e mobilizem o conceito de letramento matemático em suas práticas, bem como reformular os instrumentos avaliativos para que contemplem situações complexas, contextualizadas e abertas à argumentação e à criatividade.
Conclui-se que, para que as avaliações externas cumpram um papel transformador na educação brasileira, é fundamental que elas deixem de medir apenas o que é fácil de quantificar e passem a valorizar o que realmente importa: a capacidade dos estudantes de utilizar a matemática como linguagem, ferramenta de análise e ação no mundo.
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Arquivo – ARTIGO 01 – Danielle Marques Pereira
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