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AVALIAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: COMO AS AVALIAÇÕES EXTERNAS CONSIDERAM (OU NÃO) O LETRAMENTO MATEMÁTICO

por Danielle Marques Pereira
Two smiling students with backpacks standing in front of a chalkboard filled with math formulas.

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Danielle Marques Pereira1

Luciana Cruz de Freitas 2

AVALIAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS: COMO AS AVALIAÇÕES EXTERNAS CONSIDERAM (OU NÃO) O LETRAMENTO MATEMÁTICO

Resumo

Este artigo investiga como as avaliações externas em larga escala consideram, ou negligenciam, o letramento matemático no contexto das políticas públicas educacionais brasileiras. O objetivo central consiste em analisar a presença e a abordagem do letramento matemático nos principais instrumentos de avaliação externa utilizados no país, com ênfase nas suas implicações pedagógicas e políticas. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa, de natureza documental, com base na análise de matrizes de referência, documentos oficiais e relatórios de desempenho divulgados por órgãos governamentais. Os resultados indicam que, embora os discursos institucionais reconheçam a importância do letramento matemático, sua efetiva incorporação nas avaliações externas ainda é limitada, centrando-se em habilidades operatórias e na resolução de problemas descontextualizados. Observa-se uma tensão entre as finalidades pedagógicas e os interesses de accountability (cobranças de resultados) que orientam essas avaliações, o que compromete uma formação matemática mais crítica e significativa. Conclui-se que as políticas públicas precisam revisar os critérios de avaliação adotados, a fim de promover práticas avaliativas que valorizem o desenvolvimento do letramento matemático e contribuam efetivamente para a melhoria da aprendizagem.

Palavras-chave: letramento matemático. avaliação externa. políticas públicas. educação matemática. qualidade da educação.

1 Aluna de mestrado pela EBWU.

2 Orientadora, professora, doutora.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o Brasil tem investido em políticas públicas de avaliação externa em larga escala, com o objetivo de diagnosticar a qualidade da educação básica e subsidiar decisões educacionais. Essas avaliações, como a Prova Brasil (atualmente incorporada ao Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB) e exames estaduais como o SAEMS (Sistema de Avaliação da Educação de Mato Grosso do Sul), tornaram-se instrumentos centrais na condução de políticas educacionais, influenciando desde a formulação curricular até práticas pedagógicas nas escolas.

Nesse cenário, o debate sobre o letramento matemático ganha especial relevância. Esse conceito ultrapassa a mera capacidade de realizar operações matemáticas ou resolver problemas de forma mecânica; ele envolve a mobilização de conhecimentos matemáticos em situações contextualizadas, exigindo habilidades de leitura, interpretação, argumentação e tomada de decisão com base em dados e informações quantitativas. Em outras palavras, trata-se de compreender e utilizar a matemática como uma prática social, relacionada ao cotidiano dos sujeitos.

No entanto, a incorporação do letramento matemático como princípio norteador das avaliações externas ainda é um ponto em aberto. Há indícios de que muitos instrumentos avaliativos priorizam conteúdos procedimentais em detrimento de competências mais amplas, como a resolução de problemas em contextos reais, o raciocínio lógico, a comunicação matemática e o pensamento crítico. Essa lacuna pode comprometer o objetivo de promover uma educação matemática mais significativa e alinhada às demandas contemporâneas.

Diante disso, a presente pesquisa busca investigar de que forma as avaliações externas, como a Prova Brasil/SAEB e o SAEMS, abrangem ou deixam de incorporar os princípios do letramento matemático. A análise considera não apenas os conteúdos abordados, mas também o tipo de competência matemática demandada pelas questões e o modo como elas se relacionam com situações do mundo real. Ao refletir sobre esses aspectos, espera-se contribuir para a discussão sobre os limites e as possibilidades das políticas de avaliação em promover uma educação matemática mais crítica, contextualizada e voltada para a formação de cidadãos atuantes.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para compreender de forma mais aprofundada a relação entre avaliação externa e letramento matemático, é necessário recorrer a uma base teórica que articule os campos da educação matemática, das políticas públicas educacionais e da avaliação em larga escala. O conceito de letramento matemático, por exemplo, é amplamente discutido em documentos internacionais como os da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), especialmente no contexto do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), que define o letramento matemático como a capacidade de formular, empregar e interpretar a matemática em uma variedade de contextos, destacando o papel dessa habilidade na vida cotidiana, no trabalho e como cidadania.

Autores como Skovsmose (2000), D’Ambrosio (2001) e Barbosa (2004) também contribuem para a compreensão do letramento matemático como uma prática social, que envolve dimensões críticas e emancipatórias. Nessa perspectiva, a matemática deixa de ser vista apenas como um conjunto de técnicas e procedimentos abstratos, e passa a ser entendida como uma linguagem e uma ferramenta para compreender e atuar sobre o mundo.

No campo da avaliação, estudiosos como Freitas (2012) e Bonamino (2002) discutem os impactos das avaliações externas na organização do trabalho escolar, bem como suas limitações na aferição de aprendizagens complexas. Embora essas avaliações forneçam dados importantes para diagnóstico e formulação de políticas, muitas vezes operam com uma visão restrita do conhecimento, o que pode limitar seu potencial formativo.

Ao articular esses referenciais, esta pesquisa busca construir uma análise crítica sobre o modo como os princípios do letramento matemático são ou não são contemplados nas avaliações externas em larga escala no Brasil. A intenção é identificar não apenas lacunas, mas também possibilidades de avanço rumo a uma avaliação mais comprometida com uma educação matemática voltada à cidadania e à justiça social.

DESENVOLVIMENTO

Letramento matemático: conceito e implicações educacionais

Em um mundo que nos bombardeia com dados, gráficos e números a cada instante, a matemática se revela muito mais do que uma disciplina escolar: é uma linguagem vital, um código essencial para navegar na complexidade da vida moderna. No entanto, para muitos, a matemática ainda soa como um idioma estrangeiro, distante da realidade e desprovido de significado. Por que essa disciplina, tão presente em nosso cotidiano, ainda evoca sentimentos de aversão e incompreensão em tantos estudantes?

A resposta, talvez, resida na forma como a matemática tem sido ensinada e aprendida ao longo dos anos, priorizando a memorização de fórmulas e a aplicação mecânica de algoritmos em detrimento da compreensão conceitual e da conexão com o mundo real. Diante desse cenário, o letramento matemático surge como um farol, uma nova perspectiva que nos convida a repensar o papel da matemática na educação e na sociedade.

O letramento matemático, em sua essência, é a capacidade de traduzir o mundo que nos cerca em linguagem matemática e, a partir dessa tradução, tomar decisões conscientes e agir de forma eficaz. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2003, definiu o letramento matemático como “a capacidade de um indivíduo de formular, empregar e interpretar a matemática em uma variedade de contextos, incluindo raciocínio matemático, utilizando conceitos, procedimentos, fatos e ferramentas matemáticas para descrever, explicar e predizer fenômenos” (OCDE, 2003, p. 24).

Essa definição, por si só, já representa uma ruptura com a visão tradicional da alfabetização matemática, que se limitava ao domínio de operações básicas e à memorização de fórmulas. O letramento matemático nos convida a ir além, a desenvolver nos alunos a capacidade de:

Resolver problemas autênticos: Utilizar a matemática para encontrar soluções criativas e eficazes para desafios reais, que se apresentam em diferentes contextos da vida cotidiana, do trabalho e da cidadania.

Interpretar informações quantitativas: Compreender gráficos, tabelas, estatísticas e outras representações numéricas, identificando padrões, tendências e relações significativas.

Fazer julgamentos fundamentados: Avaliar criticamente informações quantitativas, questionando premissas, identificando vieses e tomando decisões conscientes com base em evidências.

Comunicar conclusões de forma eficaz: Expressar ideias matemáticas de forma clara, coerente e persuasiva, utilizando diferentes linguagens (oral, escrita, gráfica) e adaptando a comunicação ao público-alvo.

Em suma, o letramento matemático nos capacita a enxergar o mundo com um olhar matemático, a tomar decisões informadas e a agir de forma eficaz para transformar a nossa realidade.

No contexto brasileiro, a discussão sobre o letramento matemático ganha ainda mais força, diante dos desafios históricos que permeiam o nosso sistema educacional, marcados pela desigualdade social, pela falta de recursos e pela desvalorização da profissão docente. Autores como Ubiratan D’Ambrosio e Magda Soares, pioneiros e visionários, trouxeram perspectivas cruciais para enriquecer esse debate, propondo abordagens que valorizam a contextualização, a diversidade cultural e a funcionalidade do conhecimento matemático.

Ubiratan D’Ambrosio, com sua revolucionária proposta da etnomatemática, nos convida a questionar a visão eurocêntrica e universalizante da matemática, reconhecendo que existem diferentes formas de pensar matematicamente, intrinsecamente ligadas às práticas culturais, às atividades econômicas e às experiências sociais de diferentes grupos e comunidades. A etnomatemática, como ele mesmo define, “é o modo, a arte ou a técnica de explicar, de entender, de se situar no contexto sociocultural” (D’Ambrosio, 1996, p. 19).

Ao valorizar os saberes matemáticos presentes nas manifestações culturais, nas atividades artesanais, nas práticas agrícolas e em outras dimensões da vida cotidiana, a etnomatemática nos ajuda a construir uma educação matemática mais inclusiva, que respeite a diversidade cultural e que promova a justiça social. “É preciso reconhecer que a matemática não é uma disciplina neutra, mas sim um produto cultural, que reflete os valores, as crenças e as necessidades de diferentes grupos sociais” (D’Ambrosio, 1996, p. 47).

Magda Soares, por sua vez, nos oferece uma reflexão profunda sobre a relação entre letramento e alfabetização, argumentando que o letramento matemático envolve tanto o domínio da linguagem matemática quanto a sua funcionalidade, ou seja, a capacidade de mobilizar esse conhecimento para compreender e transformar a realidade. “O letramento é mais que alfabetização, é o desenvolvimento de capacidades de leitura e de escrita que permitem ao indivíduo participar ativamente das práticas sociais que envolvem a língua escrita” (Soares, 2004, p. 17).

Para Soares, o letramento matemático não se restringe aos muros da escola, mas atravessa as práticas sociais, permeando o nosso dia a dia e influenciando a forma como interagimos com o mundo. Desenvolver o letramento matemático, portanto, implica em formar cidadãos críticos, autônomos e capazes de utilizar a matemática como uma ferramenta para a tomada de decisões, para a resolução de problemas e para a participação ativa na vida social, política e econômica do país.

Políticas públicas de avaliação no Brasil

Desde a década de 1990, o Brasil tem implementado um conjunto significativo de políticas públicas voltadas à avaliação externa em larga escala. O objetivo primordial dessas políticas é monitorar a qualidade da educação básica e subsidiar a formulação de políticas educacionais eficazes. Um dos marcos iniciais dessa política foi a instituição do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).

O SAEB representou um passo crucial na direção da avaliação sistemática da educação no país. Posteriormente, essa iniciativa foi desdobrada em avaliações mais específicas, como a Prova Brasil, direcionada ao Ensino Fundamental, e a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), focada nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Essas avaliações passaram a desempenhar um papel estratégico na gestão da educação, exercendo influência sobre diversos aspectos do sistema educacional.

Um dos principais desafios apontados por pesquisadores como Freitas (2012) e Bonamino (2002) diz respeito ao tipo de conhecimento que as avaliações valorizam. Muitas vezes, elas se concentram na aferição de habilidades procedimentais e operatórias, deixando de lado dimensões mais amplas do conhecimento, como a capacidade de interpretação, argumentação e resolução de problemas em contextos significativos — justamente os pilares do letramento matemático.

Essa limitação pode ter implicações significativas na prática pedagógica, uma vez que o foco em resultados mensuráveis e a pressão por desempenho podem induzir práticas reducionistas, voltadas à “preparação para a prova”, em detrimento de uma aprendizagem mais ampla e significativa. Como resultado, os alunos podem desenvolver uma visão estreita da disciplina, deixando de explorar suas potencialidades e conexões com o mundo real.

Além disso, essa abordagem pode afetar negativamente a motivação e o engajamento dos estudantes, que podem passar a ver a Matemática como um conjunto de regras e procedimentos a serem memorizados, em vez de uma ferramenta poderosa para compreender e transformar a realidade. Portanto, é fundamental que as avaliações sejam diversificadas e contextualizadas, de modo a valorizar não apenas o domínio de habilidades específicas, mas também a capacidade de aplicá-las de forma criativa e significativa.

Dessa forma, é possível promover uma aprendizagem mais ampla e significativa, que prepare os alunos para lidar com desafios complexos e reais, e não apenas para responder a questões padronizadas. Isso requer uma mudança de perspectiva em relação às práticas avaliativas, que devem ser vistas como uma oportunidade para promover a aprendizagem, e não apenas como um meio de medir o desempenho.

Essa mudança pode ser alcançada por meio da implementação de avaliações mais contextualizadas e diversificadas, que valorizem a capacidade de interpretação, argumentação e resolução de problemas em contextos significativos. Além disso, é fundamental que os professores sejam apoiados e capacitados para desenvolver práticas pedagógicas que promovam a aprendizagem significativa e o letramento matemático.

Com essa abordagem, é possível criar um ambiente de aprendizagem mais estimulante e desafiador, que prepare os alunos para lidar com os desafios do século XXI e para se tornarem cidadãos críticos e engajados.

Nesse sentido, é fundamental refletir sobre como as avaliações em larga escala podem influenciar a prática pedagógica e a formação dos estudantes, incorporando (ou não) os princípios do letramento matemático. Isso implica considerar se essas avaliações estão contribuindo para a construção de uma escola mais comprometida com a formação de sujeitos críticos, autônomos e capazes de atuar com competência em uma sociedade cada vez mais permeada por informações quantitativas.

A incorporação dos princípios do letramento matemático nas avaliações sugere uma abordagem que vai além da mera resolução de problemas matemáticos, envolvendo a capacidade de interpretar, analisar e tomar decisões baseadas em dados quantitativos. Isso é especialmente relevante em um mundo onde as informações numéricas são onipresentes e influenciam desde decisões cotidianas até políticas públicas.

Uma escola que se compromete com a formação de sujeitos críticos e autônomos deve, portanto, promover uma educação matemática que valorize não apenas a compreensão de conceitos matemáticos, mas também a capacidade de desenvolver de maneira significativa. Isso inclui potencializar habilidades como a interpretação de gráficos, a compreensão de estatísticas e a capacidade de avaliar criticamente a informação quantitativa apresentada em diferentes contextos.

Ao refletir sobre como as avaliações podem incorporar esses princípios, é essencial considerar as implicações para a prática pedagógica. Isso pode envolver a reformulação de currículos e métodos de ensino para enfatizar a aplicação prática da matemática, bem como a promoção de uma cultura de questionamento e análise crítica dentro da sala de aula.

Dessa forma, a construção de uma escola mais comprometida com a formação de sujeitos críticos e autônomos não apenas melhora a educação matemática, mas também contribui para a formação de cidadãos mais informados e capazes de participar ativamente na sociedade.

As avaliações externas e o letramento matemático: uma análise da Prova Brasil/SAEB e do SAEMS

As avaliações externas, como a Prova Brasil/SAEB e o SAEMS, desempenham um papel crucial na aferição da qualidade da educação no Brasil, especialmente em relação ao letramento matemático. Embora haja avanços significativos na estruturação de matrizes de referência e descritores que orientam a elaboração de itens com base em competências e habilidades específicas, é fundamental questionar se esses instrumentos estão efetivamente capturando a essência do letramento matemático.

O letramento matemático vai além da simples resolução de problemas matemáticos; envolve a capacidade de aplicar conceitos matemáticos em contextos variados, analisar informações, tomar decisões informadas e resolver problemas de maneira eficaz. Portanto, é essencial que as avaliações externas sejam capazes de medir não apenas o conhecimento matemático, mas também a capacidade dos estudantes de aplicar esse conhecimento de forma prática e significativa.

A Prova Brasil, integrada ao SAEB, e o SAEMS são instrumentos importantes para avaliar o desempenho dos estudantes em matemática. No entanto, é necessário analisar se as matrizes de referência e os descritores utilizados nessas avaliações estão alinhados com as demandas do letramento matemático. Isso implica examinar se os itens das provas estão contextualizados, se exigem dos estudantes a aplicação de conceitos matemáticos em situações reais e se avaliam habilidades como raciocínio, argumentação e resolução de problemas de forma eficaz.

Além disso, é crucial considerar como os resultados dessas avaliações são utilizados para informar práticas pedagógicas e políticas educacionais. A análise dos resultados pode fornecer insights valiosos sobre as lacunas no ensino e na aprendizagem da matemática, permitindo que educadores e formuladores de políticas implementem intervenções direcionadas para melhorar o letramento matemático dos estudantes.

Portanto, ao ampliar a discussão sobre as avaliações externas e o letramento matemático, é fundamental não apenas analisar a estrutura e o conteúdo das avaliações como a Prova Brasil/SAEB e o SAEMS, mas também considerar como esses instrumentos podem ser aprimorados para melhor capturar a complexidade do letramento matemático e contribuir para a melhoria da educação matemática no Brasil.

A Prova Brasil é uma avaliação educacional aplicada a estudantes do 5º e 9º anos do Ensino Fundamental, com foco em quatro eixos principais: “Números e Operações”, “Espaço e Forma”, “Grandezas e Medidas” e “Tratamento da Informação”. Embora esses eixos tenham o potencial de incluir situações contextualizadas e habilidades cognitivas diversas, muitos itens da prova ainda se concentram na aplicação mecânica de algoritmos e resolução de questões descontextualizadas.

Essa abordagem limita a avaliação de competências importantes, como argumentação matemática, leitura crítica e construção de sentidos. Estudos recentes, como os de Souza (2016) e Carvalho (2018), destacam que, apesar de existirem questões que se aproximam do letramento matemático, como interpretação de gráficos e problemas cotidianos, elas são minoria. A estrutura da prova, voltada para escalas de proficiência e comparações entre redes de ensino, muitas vezes restringe a inclusão de questões abertas ou complexas, limitando a avaliação de habilidades como comunicação matemática e pensamento crítico.

Para humanizar a Prova Brasil, seria necessário repensar sua estrutura e incluir questões que promovam a aplicação de conceitos matemáticos em contextos reais, estimulando a argumentação e o pensamento crítico. Isso poderia ser alcançado por meio da incorporação de questões abertas e problemas que exijam a mobilização de diferentes habilidades cognitivas. Além disso, a avaliação poderia ser diversificada, incluindo não apenas questões objetivas, mas também tarefas que permitam aos estudantes demonstrar sua capacidade de comunicação matemática e resolução de problemas de forma mais autônoma.

Dessa forma, a Prova Brasil poderia se tornar uma ferramenta mais eficaz para avaliar a proficiência dos estudantes em matemática, considerando não apenas a aplicação de fórmulas e algoritmos, mas também a capacidade de pensar criticamente e resolver problemas de forma contextualizada. Isso contribuiria para uma educação matemática mais significativa e alinhada com as necessidades do século XXI.

Um cenário análogo é observado nas avaliações realizadas em âmbito estadual, como o SAEMS (Sistema de Avaliação da Educação de Mato Grosso do Sul), que, apesar de se fundamentar nas diretrizes curriculares locais e buscar alinhar-se às competências preconizadas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tende a priorizar, na elaboração de seus itens, habilidades operacionais e conteudistas. Embora haja tentativas de incorporar situações-problema contextualizadas, o modelo prevalecente ainda se apoia em uma lógica tradicional de avaliação, centrada na obtenção da resposta correta e na classificação dos estudantes conforme seus níveis de desempenho.

Essa abordagem acaba por distanciar as avaliações externas dos princípios basilares do letramento matemático, notadamente no que concerne à articulação entre o conhecimento escolar e os contextos sociais, culturais e econômicos em que os estudantes estão inseridos. Além disso, a limitada diversidade nos formatos dos itens, predominantemente de múltipla escolha, dificulta a avaliação da capacidade dos alunos de argumentar, justificar suas escolhas ou explorar diferentes estratégias de resolução de problemas.

Portanto, a análise das avaliações da Prova Brasil/SAEB e do SAEMS sugere que, embora as matrizes dessas avaliações contenham espaço para o desenvolvimento do letramento matemático, esse potencial permanece subexplorado na prática. A ênfase excessiva na mensurabilidade, na comparabilidade dos resultados e na padronização tende a simplificar a complexidade daquilo que é avaliado, em detrimento de uma abordagem mais formativa e significativa da matemática. Isso sinaliza a necessidade de repensar os critérios de construção e seleção de itens, bem como de incorporar modalidades mais diversificadas de avaliação que valorizem o uso da matemática como instrumento de leitura e intervenção no mundo.

A mudança nessa direção implica não apenas uma revisão das práticas de avaliação, mas também uma redefinição dos objetivos educacionais, de modo a priorizar a formação de indivíduos capazes de aplicar a matemática de forma significativa em suas vidas. Isso requer uma abordagem mais holística e contextualizada da avaliação, que considere as diversas dimensões do letramento matemático e promova uma compreensão mais profunda da disciplina.

Dessa forma, torna-se possível avançar em direção a uma educação matemática mais relevante e eficaz, que prepare os estudantes para os desafios do mundo contemporâneo e os habilite a utilizar a matemática como uma ferramenta poderosa para compreender e agir sobre a realidade.

METODOLOGIA

A presente pesquisa é de natureza qualitativa e utilizou a análise documental como principal estratégia metodológica. Esse tipo de abordagem é especialmente adequado quando se busca compreender discursos, representações e intenções subjacentes a documentos oficiais e institucionais, bem como identificar padrões, ausências e recorrências que evidenciem determinadas perspectivas educacionais.

O corpus documental foi composto por fontes primárias e secundárias. As fontes primárias incluem os documentos produzidos pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), com destaque para as matrizes de referência do SAEB, os descritores das edições da Prova Brasil realizadas entre 2007 e 2021, além de relatórios técnicos e boletins pedagógicos que acompanham os resultados dessas avaliações. Também foram analisadas as matrizes e cadernos de prova do SAEMS, no intuito de estabelecer uma comparação entre avaliações federais e estaduais.

Como fontes secundárias, foram consultados artigos científicos, dissertações e teses que discutem criticamente a relação entre avaliação externa e letramento matemático, especialmente aqueles que tratam das concepções de currículo, práticas avaliativas e implicações pedagógicas das políticas de accountability.

A análise dos documentos seguiu um roteiro de categorização baseado nos objetivos da pesquisa. Foram observados, principalmente, os seguintes aspectos:

  • Quais habilidades são mais frequentemente avaliadas nos instrumentos analisados, especialmente no campo da matemática;

  • Se há foco em contextos reais, ou seja, se os itens propõem situações do cotidiano ou socialmente relevantes;

  • Em que medida os itens demandam interpretação de informações como gráficos, tabelas, textos verbais ou não verbais;

  • Quais competências estão sendo promovidas pelos itens, com especial atenção àquelas relacionadas ao letramento matemático, tais como a capacidade de argumentar, comunicar ideias matemáticas, resolver problemas abertos e tomar decisões com base em dados.

A análise foi orientada por uma perspectiva crítica, que considera que as escolhas presentes nas avaliações não são neutras, mas refletem concepções de conhecimento, ensino e aprendizagem que afetam diretamente as práticas pedagógicas nas escolas. Ao privilegiar determinadas habilidades em detrimento de outras, as avaliações influenciam o que é ensinado, como é ensinado e com que finalidade.

O objetivo central da metodologia, portanto, não foi quantificar a presença de itens com determinada característica, mas compreender qualitativamente o perfil das habilidades e competências valorizadas pelas avaliações externas, identificando os pontos de aproximação e distanciamento em relação aos princípios do letramento matemático.

Quadro Critérios de análise dos instrumentos avaliativos com base no letramento matemático

 

Critério de Análise

Descrição

Indicadores observáveis nos documentos

Frequência de habilidades avaliadas

Identificação das habilidades mais recorrentes nas provas de matemática

Itens por descritor; agrupamento por eixo temático; grau de complexidade

Contextualização dos itens

Verificação da presença de situações-problema ligadas a contextos reais e socialmente relevantes

Presença de enunciados com situações do cotidiano ou temas atuais

Demanda de interpretação e leitura crítica

Análise do grau de exigência cognitiva para interpretar dados, textos ou representações

Leitura de gráficos, tabelas, imagens, problemas com múltiplas informações

Mobilização de competências associadas ao letramento

Avaliação da presença de elementos como raciocínio lógico, argumentação e tomada de decisão

Itens que exigem justificativas, escolha entre alternativas com base em dados

Formato e estrutura dos itens

Consideração do tipo de item (fechado, aberto, múltipla escolha) e sua adequação à proposta

Variedade de formatos; espaço para expressão do aciocínio do estudante

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises realizadas ao longo desta pesquisa evidenciam uma tensão central nas políticas de avaliação externa em larga escala no Brasil: embora haja, nos discursos oficiais, uma valorização crescente das competências e habilidades associadas ao letramento matemático, essa valorização ainda não se concretiza de forma consistente na prática avaliativa. Tanto nas avaliações federais, como a Prova Brasil/SAEB, quanto em instrumentos estaduais, como o SAEMS, observa- se uma predominância de questões centradas em procedimentos algorítmicos, operações básicas e reconhecimento de padrões formais, com limitada inserção de contextos significativos.

Essa dissociação entre discurso e prática revela um desafio importante: o de fazer com que as avaliações realmente reflitam os princípios de uma educação matemática voltada à formação cidadã. A pouca ênfase em contextos reais, em situações-problema complexas e em habilidades interpretativas limita o potencial formativo das avaliações externas e restringe sua capacidade de induzir mudanças curriculares mais profundas. Nesse cenário, corre-se o risco de perpetuar uma visão reducionista da matemática, desvinculada das práticas sociais e da vida cotidiana dos estudantes justamente o oposto do que propõe o letramento matemático.

Além disso, a lógica de padronização e de responsabilização das escolas por resultados mensuráveis tende a reforçar práticas pedagógicas voltadas à preparação para as provas, em detrimento de propostas mais investigativas, reflexivas e contextualizadas. Para romper com essa lógica, é necessário repensar os próprios fundamentos que orientam a construção das matrizes de avaliação, os formatos dos itens e os critérios de correção, aproximando-os das diretrizes curriculares expressas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que reconhece o papel formativo da matemática e sua importância na construção da autonomia e da criticidade dos sujeitos.

A promoção de um letramento matemático real exige, portanto, um alinhamento mais efetivo entre currículo, avaliação e formação docente. As avaliações externas não devem ser vistas apenas como mecanismos de controle, mas como instrumentos pedagógicos que contribuem para o aprimoramento do ensino e da aprendizagem. Isso implica investir na formação dos profissionais da educação para que compreendam e mobilizem o conceito de letramento matemático em suas práticas, bem como reformular os instrumentos avaliativos para que contemplem situações complexas, contextualizadas e abertas à argumentação e à criatividade.

Conclui-se que, para que as avaliações externas cumpram um papel transformador na educação brasileira, é fundamental que elas deixem de medir apenas o que é fácil de quantificar e passem a valorizar o que realmente importa: a capacidade dos estudantes de utilizar a matemática como linguagem, ferramenta de análise e ação no mundo.

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Arquivo – ARTIGO 01 – Danielle Marques Pereira

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